Os seus dedos, macios de veludo, seguram-me a tampa, encostam-na, com
cuidado, à parte de trás. Dois panos do pó que um dia a avó bordou, que me
tapam e protegem as teclas, são atirados para cima da escrivaninha, ao meu
lado, onde ela costuma sentar-se a estudar e a ler.
É então que sinto as cordas do meu coração quase a estoirar de alegria,
pois que é agora que lhe posso dizer tudo o que me vai na alma!!!
Os seus deditos a medo, titubeantes, começam a arrancar os primeiros
acordes. E eu a fazer todo o possível para que tudo saia bem e ela não desista
e me tape outra vez. Que esforço eu faço!… Mas alguns dos meus dentes brancos
já não correspondem totalmente ao acorde que ela pretende. E eu esforço-me…
Ela levanta-se, e eu penso sempre, de cada vez, que se vai embora, que já
não quer mais,… mas não! São sobressaltos do vem-que-não-vem, do
fica-que-não-fica,… mas a vida é isso mesmo!
Só que desta vez ela não foi. Procurou apenas a partitura de Beethoven.
Que lindo! Toda a minha sensibilidade se motiva e canaliza nesta bonita
sonata. Todo eu estou ali, inteiro, a dar o meu melhor; eu e ela numa música
só, em uníssono, na produção da música-vida-beleza que Beethoven nos deu.
São os meus melhores momentos…! Em que eu dou conta que sou mais que um
simples móvel de quarto…; em que sinto que faço parte da vida presente-futuro
dela, pois sou eu que a ajudo a criar, a ser capaz de transmitir a todo o
universo o que sente, o que lhe vai na alma e que lhe sai pelas pontas dos
dedos.
Quando ela acaba, e me tapa outra vez, já não me importa! Demos a nossa
contribuição à vida, por hoje.
O que me entristece e me faz infeliz, isso sim, é o facto de ela deixar o
amanhã para depois de amanhã. O de ela, pequenina ainda, não compreender que a
vida se vive em cada minuto, que o dia que passa se não recupera mais!
Mas só lho posso dizer através dela e é ela que tem de o compreender
sozinha, enquanto eu, fechado, tapado, espero o toque da sua mão.
Gabriela
Carvalho
A caixinha de Memórias
(adaptado)
A caixinha de Memórias
(adaptado)
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