quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Verdes são os campos


Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Luís Vaz de Camões

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Concurso "Ler o Mar"


No âmbito da Semana da Leitura 2013, que vai decorrer de 11 a 15 de março, centrada, nesta 7.ª edição, no tema "Mar", o Plano Nacional de Leitura, em parceria com a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC) e com o apoio do Banco Popular, promove o Concurso "Eu Escrevo", subordinado ao tema "Ler o Mar". Pretende-se, a partir de leituras diversas, premiar trabalhos que cruzem a Leitura e o Mar nas suas múltiplas dimensões. O concurso, de nível nacional, tem como público-alvo as crianças e jovens desde a Educação Pré-Escolar ao 12.º ano de escolaridade, dos estabelecimentos de educação e de ensino das redes pública e privada. A inscrição está aberta desde o dia 3 de janeiro. A entrega dos trabalhos decorre entre 1 e 31 de março.


Os trabalhos candidatos ao concurso devem ser enviados pela escola sede do agrupamento/escola não agrupada, depois de selecionados por nível/ciclo de educação ou de ensino, no período que decorre entre 1 e 31 de março, para o endereçoconcursos@pnlonline.net.

Tal como nas edições anteriores, a Semana da Leitura 2013 convida as escolas a criar ambientes festivos em que se celebram a leitura e os livros.

A Semana da Leitura 2013 desafia crianças, jovens, adultos e a comunidade em geral, de autarquias a empresas, de escritores e artistas a individualidades públicas, a unirem-se na grande festa do livro e da leitura.

Para mais informações, incluindo a consulta do regulamento, aceder ao sítio Semana da Leitura - Ler + Escolas.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O SOLDADO JOÃO


Era uma vez um soldado chamado João. Vinha de sachar milho, de regar cravos, de semear couves e manjericos.
Agora, toca a marchar, de espingarda ao ombro, mochila às costas, botas de cano, farda a rigor.
Pelos campos fora, o soldado João era a vergonha dos batalhões. Trazia uma flor ao peito, punha as mãos nas algibeiras, coçava o nariz, não acertava o passo. E, para cúmulo, assobiava ou cantava modinhas da sua aldeia.
Bem lhe ralhava o sargento, o ameaçava o capitão, o castigava o general.
O soldado João continuava a marchar, feliz e desengonçado, como se fosse à feira comprar gado ou ao mercado vender feijão.
Mas tanto, tanto marchou o soldado João, que chegou à terra da guerra.
Todos os soldados carregaram as espingardas e fizeram pontaria. Mas o soldado João achou indelicado não ir cumprimentar os colegas da outra banda. Pousou a arma, saltou a trincheira, avançou estendendo a mão.
Então, os outros soldados, espantados, estenderam também a mão.
— Fogo! — gritava o sargento.
— Disparem! — mandava o capitão.
— Atirem! — ordenava o general.
Mas os soldados eram tantos que demorava muito tempo a cumprimentá-los. Foi o sargento buscar o soldado João, dizendo:
— Rapaz, não te lembras de que te ensinei que a guerra é para matar? Vou pôr-te a corneteiro, já que não tens jeito para atirador.
O soldado João pegou na corneta, ei-lo a soprar, e logo o fandango ecoou pelos campos fora, convidando à dança.
Sapateava a tropa, rodopiava, batia palmas.
— Alto! — gritava o sargento.
— Basta! — mandava o capitão.
— Parem! — ordenava o general.
Arrancou o sargento a corneta ao soldado João e, zangado, explodiu:
— Vais para cozinheiro do exército. Ao menos aí não empatarás a guerra.
Mal chegou à cozinha, foi buscar café. Arrastava pelas fileiras, fumegando, o enorme panelão, apetitoso, perfumado.
Aproximava-se de cada soldado, tirava-lhe o capacete para fazer de malga, despejava-lhe uma concha de café. Amigos e inimigos, todos se deliciavam com tão inesperado pequeno-almoço.
— Ao vosso lugar! — gritava o sargento.
— A postos! — mandava o capitão.
— Perfilar! — ordenava o general.
Tiraram a panela ao soldado João, enrolaram-no numa bandeira da cruz vermelha, dizendo:
— Já não és atirador, nem corneteiro, nem cozinheiro. Daqui por diante, és enfermeiro militar.
Mal se viu na nova função, ei-lo a correr à procura de feridos.
Viu um tenente com um olho negro e foi tratá-lo.
Viu um furriel com uma picada de abelha e, num instante, lhe arrancou o ferrão.
Notou que os dois generais inimigos coxeavam ligeiramente, descalçou-lhes as botas e pôs-se a tirar-lhes os calos.
Então, o incrível aconteceu.
Os dois generais levantaram-se ao mesmo tempo e condecoraram-no com duas luzentes medalhas de ouro.
Como era noite, acharam que já passara o tempo da guerra, apertaram as mãos e partiram em paz.
O soldado João sete dias andou até chegar à sua aldeola, onde de novo sacha milho, rega cravos, semeia couves e manjericos.

Luísa Ducla Soares
Porto, Editora Civilização, 2002

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Faça lá um poema




CONCURSO
 

FAÇA LÁ UM POEMA

No intuito de incentivar o gosto pela leitura e pela escrita de poesia, O Plano Nacional de Leitura e o Centro Cultural de Belém, numa iniciativa conjunta, convidam todas as escolas do país, públicas ou privadas, do 1.º Ciclo ao Ensino Secundário,  a participar no Concurso de Poesia FAÇA LÁ UM POEMA.
O Concurso decorre entre Janeiro e Março de 2013 e terá a sua Final no dia 24 de Março de 2013. Nesta data, celebra-se, no Centro Cultural de Belém [CCB], o DIA MUNDIAL DA POESIA em cujo Programa será integrado com uma simbólica entrega de prémios aos vencedores.
Para ver o regulamento do concurso clique aqui.



sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Conheces o autor do mês...


Mário Dionísio (1919- 1993)
Poeta, ensaísta, ficionista, romancista, artista plástico e crítico de arte, licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, onde viria a desenvolver atividade docente. Teve um papel importante no neo-realismo português sendo um dos principais promotores e teorizadores desta corrente. A sua poesia foi-se progressivamente afastando do neo-realismo, uma vez que o autor evoluiu com o tempo e as mudanças estéticas, políticas e sociais.
Interveio em diversas conferências, debates, além de ter colaborado em publicações periódicas como a Seara Nova, Vértice ou Diário de Lisboa e foi também tradutor.
Prefaciou diversos autores como Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira e José Cardoso Pires e Alves Redol.
 Enquanto pintor, usou os pseudónimos de Leandro Gil e José Alfredo Chaves. Participou em diversas exposições coletivas, tendo em 1989 realizado a sua primeira exposição dedicada em exclusivo à sua pintura.

Poemas e Ficção
•             Poemas (1941)
•             O Dia Cinzento (1944)
•             As Solicitações e Emboscadas (1945)
•             O Riso Dissonante (1950)
•             Memória dum Pintor Desconhecido (1965)
•             Poesia Incompleta (1966, onde reuniu toda a obra publicada até então)
•             Le Feu qui Dort (1967)
•             Não Há Morte Nem Princípio (1969)
•             Terceira Idade (1982)
•             Monólogo a Duas Vozes (1986)
•             [Autobiografia](1987) 
•             A Morte É para os Outros (1988)

Obras sobre pintura
•             Vincent Van Gogh (1947)
•             Conflito e Unidade da Arte Contemporânea (1958)
•             A Paleta e o Mundo (1956, publicada depois em 5 volumes.) 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Este mês podes ler...


Histórias de vidas normais e de gestos quotidianos, num tempo talvez distante, mas com muito de atual. É isso que define os contos que constituem este livro, onde os sonhos e medos do dia-a-dia são o molde para cada vida e cada história.
Visão de pequenas rotinas e grandes tragédias pessoais, este conjunto de contos, alguns impressionantes e nenhum menos que interessante, cativa tanto pelas histórias individuais como pelo reflexo de tempos e costumes que a totalidade dos contos transmite. Uma leitura que, independentemente do anos que passaram desde a sua primeira publicação, continua interessante e actual.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Concurso Nacional de Leitura


Já são conhecidos os vencedores da 1.ª Fase  Concurso Nacional de Leitura. Aqui ficam os nomes dos participantes, sendo que os três primeiros do 3.º ciclo e as alunas do Secundário irão representar a escola na fase distrital. 
A todos os alunos que participaram os nossos parabéns!

3º ciclo Ensino Secundário
1.º/2.º Inês Bica 1.º Jessie Lopes
1.º/2.º Joana Ganhão 2.º Beatriz Rosa
3.º Marta Romão
4.º Ana Rita Costa
5.º Mafalda Pena





Este mês podes ver...


Num Portugal atordoado pelo fim da I República, Florbela separa-se de forma violenta de António. Apaixonada por Mário Lage, refugia-se num novo casamento para encontrar estabilidade e escrever, mas a vida de esposa na província não é conciliável com sua alma inquieta. Não consegue escrever nem amar. Ao receber uma carta do irmão Apeles, oficial da Aviação Naval e de licença em Lisboa, Florbela corre em busca de inspiração perto da elite literária que fervilha na capital. …
Na cumplicidade do irmão aviador, Florbela procura um sopro em cada esquina: amantes, revoltas populares, festas de foxtrot e o Tejo que em breve verá o irmão partir num hidroavião. O marido tenta resgatá-la para a normalidade, mas como dar norte a quem tem sede de infinito? Entre a realidade e o sonho, os poemas surgem quando o tempo pára. Nesse imaginário febril de Florbela, neva dentro de casa, esvoaçam folhas na sala, panteras ganham vida e apenas os seus poemas a mantém sã.
 Por isso, Florbela tem que escrever!

Este filme é o retrato íntimo de Florbela Espanca: não de toda a sua vida cheia de sofrimento, mas de um momento no tempo, em busca de inspiração, uma mulher que viveu de forma intensa e não conseguiu amar docemente. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Escrever um livro, criar um filho, plantar uma árvore


Escrevi um livro.
Quantos anos a sonhá-lo,
A rascunhá-lo nas mesas dos cafés,
A escrevê-lo nos intervalos do emprego,
A vivê-lo,
A sofrê-lo,
Na província, nas cidades...!
Criei um filho.
Tanta alegria no meu coração!

Só ainda não plantei uma árvore.
O frágil caule como protegê-lo?
Como não deixar que os bichos
Maculem as pequeninas folhas?
E como dialogar com uma árvore-menina?
Agora vai sendo tempo.
Os anos já me pesam.
Amanhã vou plantar uma árvore.
In Obra poética, Saul Dias

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

TOP dos mais de dezembro




Este mês podes ouvir...


Rui Veloso

Nascido em  Lisboa, mas criado desde os três meses de idade no Porto, é filho do engenheiro Aureliano Capelo Veloso, ex-presidente da Câmara Municipal do Porto. É igualmente sobrinho paterno do General Pires Veloso, ex-governador de São Tomé e Príncipe.
Cantor, compositor e guitarrista, começou a tocar harmónica aos seis anos. Mais tarde deixar-se-ia influenciar por B.B. King e Eric Clapton, e lançou, com vinte e três anos, o álbum que o projetou no panorama da música nacional, Ar de Rock. Dele fazia parte a faixa Chico Fininho, um dos maiores sucessos da obra de Rui Veloso e de Carlos Tê, seu letrista.
Entre os seus restantes sucessos fazem parte Porto Sentido, Não Há Estrelas No Céu, Sei de Uma Camponesa, A Paixão (Segundo Nicolau da Viola) e Porto Covo.
Na década de 1990 integrou o Rio Grande, formado por Tim, João Gil, Jorge Palma e Vitorino, num estilode música popular com influências alentejanas que alcançou uma considerável popularidade. Dessa experiência resultariam dois discos, um de originais em 1996, outro ao vivo, em 1998.
Em 2000 lançou a compilação O Melhor de Rui Veloso - 20 anos depois, seguindo-se um disco de tributo dedicado ao seu álbum de estreia: 20 anos depois - Ar de Rock.
Em 2000 lançou a compilação O Melhor de Rui Veloso - 20 anos depois, seguindo-se um disco de tributo dedicado ao seu álbum de estreia: 20 anos depois - Ar de Rock.
Em 2003, a mesma formação dos Rio Grande, mas sem Vitorino, voltou a juntar-se no projeto Cabeças no Ar, dedicado a canções nostálgicas que remontam aos tempos da escola, entre elas, O Primeiro Beijo.
Regressou aos discos de originais, em 2005, com A Espuma das Canções. Em 2 de Junho de 2006 atuou no Rock in Rio em Lisboa, precedendo os concertos de Carlos Santana e de Roger Waters. No mesmo ano comemorou vinte e cinco anos de carreira, ocasião brindada com três concertos, dois no Coliseu do Porto e um no Pavilhão Atlântico. Em 2008 colaborou com a banda Per7ume no tema Intervalo, que foi um record de vendas nacional. Em 2009 lançou o álbum Rui Veloso ao Vivo no Pavilhão Atlântico. No ano de 2010, o Rui Veloso, conhecido como "Pai do Rock Português" comemorou 30 anos de carreira com concertos no Coliseu de Lisboa e no Coliseu do Porto, esgotando ambos.
Como empresário abriu o seu próprio estúdio, o Estúdio de Vale de Lobos, situado em Vale de Lobos, perto de Belas, e fundou também a editora Maria Records, que acabou por fechar.
Rui Veloso recebeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante, atribuído pelo Presidente Mário Soares.

Discografia
Álbuns de estúdio
1980 - Ar de Rock
1982 - Fora de Moda
1983 - Guardador de Margens
1986 - Rui Veloso
1990 - Mingos & Os Samurais
1991 - Auto da Pimenta
1995 - Lado Lunar
1998 - Avenidas
2005 - A Espuma das Canções
2012 - Rui Veloso e amigos[3][4]
Ao vivo
1988 - Rui Veloso Ao Vivo
2003 - O Concerto Acústico
2009 - Rui Veloso ao Vivo no Pavilhão Atlântico (CD+DVD)
Compilações
2000 - O Melhor de Rui Veloso - 20 anos depois

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Famílias Desavindas


     Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há de encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina telhados de ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta.

     No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fracassou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que inventara um semáforo moderno, operado a energia elétrica, capaz de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois elandós da sociedade. A autoridade gostou do projeto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia. Os semáforos estiveram ensejados para a Ponte, mas, de proposta em proposta (sempre se tratava de uma implantação experimental), acabaram na infrequentada Rua Fernão Penteado, na intersecção com a travessa de João Roiz Castelo Branco.
     O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de ferro. A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista. Durante a Primeira Guerra foi introduzida uma melhoria. Uma inspeção da Câmara concluiu que a roda da frente era destituída de utilidade. Foi retirada.
Houve muitos candidatos ao cargo de samaforeiro, embora um equívoco tivesse levado à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A realidade corrigiu o dislate porque acabou por ser escolhido um galego chamado Ramon, que era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha pedalado na vida. Mas Ramon era esforçado, cheio de boa vontade. A escolha foi acertada.
     Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da segunda Grande Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável, sugerindo que o carreto bastasse.
     Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é sempre possível personalizar a relação com o sinal. Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita.
     Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar os transeuntes: «Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas. Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os resultados.
Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas fazia questão de orientar os pacientes para um colega que desse uma segunda opinião. Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido.
     Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico passava e rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem parar de dar ao pedal: «Xó, magarefe!» Uma tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo.
     Este Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos doentes, com impaciência, e depois impunha silêncio e começava: «As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No primeiro caso, chamam-se viróticas, no segundo, bacterianas.» E estava horas nisto, até o doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele praticava a terapia do sono. Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir explicar. Alguns até faziam perguntas. Após a consulta, muito à puridade, o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi assim com Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco.
     Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa-de-ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!» com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um roubo por esticão um jovem que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais nada e dobrou-se para o sinistrado: «Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou perfurantes.»
     Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse entrado no capítulo das «manchas de sangue».
     Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do nascer ao pôr do Sol, a acionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer penitenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa.

                    Mário de Carvalho, Contos Vagabundos, Lisboa, Editorial Caminho, 2000