Esta é uma história verdadeira, pois muitas vezes o vi, da minha janela, com estes olhos que a terra e as raízes hão de beber.
Trazia as duas ovelhas para o retalho de campo, ainda sem casas, liberto de muros. Nenhum cão o acompanhava. O seu amor e o seu cuidado bastavam a tão pequeno rebanho. Malhada e Ladina vinham na dianteira e o príncipe seguia-as rodando um arquinho, que uma gancheta de arame tocava, manso e fácil. Mal eram chegados, deitava-as a pastar, tirava a gancheta de arame ao arquinho e com ele armava uma coroa, que lhe cingia a testa e a palha, loira, dos cabelos. Depois sentava-se numa pedra, alta, seu trono. E reinava sobre urzes, cardos, giestas, borboletas, gafanhotos, lagartixas e seixinhos do campo verde. As ovelhas davam volta ao reino como a um redondel de circo, baliam, faziam tilintar os chocalhos, cabriolavam, tosavam erva e tojo.
O príncipe vigiava-as cumprindo as recomendações de sua mãe, pois a mandado dela ali vinha. Mas a grande preocupação do seu coraçãozinho era quebrar-lhes o encanto. Qual seria a princesa? Malhada ou Ladina? Sim, porque uma delas princesa seria por força. Mas qual? Em vão se interrogava, escutava o ramalhar do vento, o canto dum pássaro, o silêncio das flores da urze, do tojo ou da giesta, o pulsar quente e húmido da terra, esperando qualquer socorro que o ajudasse a desvendar o segredo. Malhada era tão meiga! Vinha lambê-lo. Parecia querer falar. Dizer: – «Sou eu, sou eu». Mas seria? E Ladina tão arisca e desdenhosa? Era com certeza ela, castigada, a pobrezinha! E abraçava-a. Impossível decidir. Para consolar e esquecer aquela tortura construía, com pedras miúdas, estradas sinuosas, sem fim, que se perdiam nos tufos rumorejantes. Procurava joaninhas de vestido às pintas, que lhe passeavam as costas da mão e depois recolhia na palma, antes de, com o vento do seu sopro, lhes desfraldar as asas e as lançar no espaço, verde, do campo. Jogava ao berlinde com bichinhos de conta que se enrolavam, de propósito, para brincar com ele. E às vezes cortava uma palhinha de giesta para apanhar um grilo, que se deixava colher e, breve, voltava à liberdade das suas asas, pois todos eram livres no reino verde. Era tão bom ouvir o risinho do cri-cri guizalhar na tarde! Nada, porém, o fazia esquecer das ovelhas. Chamava-as:
– Malhada! Ladina!
E tirava a coroazinha da cabeça para a experimentar nas suas amigas, que se impacientavam e lha atiravam ao chão.
Recusavam-no? Temia o príncipe. Não e não. O que não podiam era dar-lhe indícios, revelar-lhe como havia de lhes quebrar o encanto, era o que era. Sozinho teria de o fazer.
Mas como? Mas quando? O sol começava a rasar a copa das árvores da estrada. As lagartixas, fartas de soalheiro, sumiam-se. E um ventinho vindo do mar desprendia as borboletas pousadas no tojo ou na giesta levando-as na dianteira, como pétalas soltas. Eram horas de partir, de abandonar o reino verde, bichos, flores e pedras.
Então o principezinho, para que ninguém fizesse troça ao vê-lo atravessar a cidade com duas ovelhas, tirava a coroazinha da cabeça e enfiava-a na gancheta de arame.
E seguindo o arco tocava Malhada e Ladina, antes que se acendessem as candeias, pequeninas, das estrelas.
Luísa Dacosta
O príncipe que guardava ovelhas
Porto, Edições Asa, 2002
Texto adaptado
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