terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O grilo de Barcelona

Andávamos de automóvel em Barcelona. Milhares de carros andam todos os dias em Barcelona. Barcelona é uma grande cidade. São quilómetros de ruas largas. Muitas, cheias de flores e de grandes prédios de pedra tão trabalhada, cheia de recortes como as próprias flores. Ruas por onde andou Picasso, aquele pintor tão grande que em Barcelona não coube.
O trânsito tinha parado. Aparecera a luz vermelha para mandar parar todos os carros. E tudo parou.
Era noite.
Nós íamos num táxi – um táxi cor de laranja e negro como são todos os táxis em Barcelona. Conforme é o dia de descanso do táxi – motorista e motor – está escrito, por fora, logo abaixo da capota: Lunes (segunda-feira), Lu; Martes (terça-feira), M; Miercoles (quarta-feira), Mi; Jueves (quinta-feira), J; Viernes (sexta-feira), Vi; Sabado (sábado), S; Domingo (domingo), D.
Mas não devia ser o dia de descanso no mundo dos grilos porque a minha tia, com quem eu ia no carro com o meu primo, disse:
— É um grilo! Escutem…
Numa cidade tão grande! Naquele silêncio, no meio da paragem de todos os carros, a voz pequenina do grilo erguia-se na noite toda iluminada de estrelas e das cores dos anúncios luminosos.
— Um grilo!
Todos sorrimos encantados. Vimos o motorista sorrir, refletido no espelhinho retangular do táxi.
— Que quieren ustedes! El pobrecito trabaja también!
O pobrezito, o grilo, trabalhava como uma caixinha de música antiga, ou o músico de uma grande orquestra que tocasse uma música para todo o mundo. Ou até como um pequenino transístor de pilhas ali sobre o tapete de relva que ficava ao lado do nosso táxi.
Tapete de relva que circundava uma estátua de pedra branca – estátua de um Poeta que também cantara versos de alegria ou de tristeza, da vida de todos nós.
Mas a estátua perdia-se na noite, nos milhares de estrelas do céu, nos anúncios, nas janelas iluminadas, às quais, de vez em quando, se encostava alguém a receber o fresco da noite.
Mas foram uns segundos. A luz mudou para verde. Os carros recomeçaram a andar. Um barulho ensurdecedor ao longo das longas e largas ruas.
O grilo já não se ouvia. As suas asas brilhantes continuariam a estremecer sobre a relva húmida e verde, pequenina caixa de música, pequenino músico de uma orquestra, ou até pequeno transístor, minúsculo, de trazer no bolso.
Eu tinha vindo de uma ilha, sobre o oceano Atlântico, na qual havia tantos grilos e, talvez por haver tantos, ali o seu canto não me espantava.

E, naquela rua de Barcelona, entre uma luz vermelha e outra verde, o canto dum pequenino grilo dizia-me, e a todos que íamos no carro, um segredo muito belo, que não tinha palavras portuguesas nem castelhanas, nem abreviaturas como as dos dias da semana escritos por fora dos táxis negros e cor de laranja. Que não era escrito em língua nenhuma senão a do coração dos homens. Era o pequenino grilo dos montes da ilha solitária do Atlântico, ou daquela grande cidade já perto de França.
O sorriso do motorista no espelhinho, esta capacidade de todos nos entendermos, de todos sermos irmãos, amigos. De escutarmos, encantados, um pequenino grilo no silêncio de segundos entre a luz vermelha e a verde. Numa cidade de três milhões de pessoas.
Amigo, que me lês, talvez digas que eu não te contei uma história. Mas tu próprio, que és um futuro Homem, fraterno e bom, contarás aos teus filhos esta história que não é fábula imaginada e que se chama «O Grilo de Barcelona». Lunes, Martes, Miercoles, Jueves, Viernes, Sabado, Domingo… uma história de todos os tempos, de todos os dias. A história do silêncio e de um pequenino cantar.

Matilde Rosa Araújo
 O Sol e o Menino dos Pés Frios (adaptado)
 Lisboa, Livros Horizonte Lda, 2001

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