No dia seguinte, o Joel esperou o Jorge na paragem do autocarro perto da escola:
[…] – Fizeste a minha ficha de leitura?
– Fiz – disse o Joel. – Mas se calhar não devia. Não te fazia mal nenhum ler um livro.
– Leio outro. Olha! Até sou capaz de ler esse tal policial que estás a ler, o dos crimes que acontecem mesmo.
– Acabei-o ontem, é do melhor!
Pior, muito pior foi o que se passou na aula de Português. A dra. Odete […] falou da necessidade e da importância da leitura e depois passou a interrogar os alunos sobre o livro recomendado. Calhou ao André, à Rosinha, à Inês, à Sara e ao Luís, o menino-prodígio, que contou a história toda numa espécie de resumo alargado e fez montes de considerações inteligentes e desnecessárias. Os outros sentiram-se todos desrespeitados. Como podia aquele tipo rebaixar-se tanto?
Só o Jorge apreciou o tamanho daquele discurso do Luís. Agora já faltava pouco para tocar e ele não ia ser chamado. Assim, deixavam as fichas no fim e iam à vida. Estava salvo, pensava ele. Só que o tempo, nas aulas, passa muito devagarinho. E ainda houve tempo para ele:
– Jorge! È a tua vez – disse a dra. Odete. – Lê a tua ficha e depois fala-nos da tua experiência de leitor.
O Jorge levantou-se e olhou para o relógio. Faltavam menos de cinco minutos para tocar. Ou seja, uma eternidade.
– Então? – disse a dra. Odete. – Estamos todos à espera.
O Jorge não se apressou. Leu vagarosamente a ficha que o Joel lhe tinha preparado. […] Mas aquela página que ele tinha à frente não dava para cinco minutos de leitura. Quando acabou de a ler ainda faltavam três minutos para tocar. Se ao menos ele tivesse prestado atenção ao que os outros tinham dito, podia agora improvisar. Assim, começou a repetir o que estava na ficha e a acrescentar umas banalidades aflitivas:
– Gostei muito deste livro, foi um dos que gostei mais, por todas aquelas coisas que eu já disse e até por algumas que disseram outros aqui. Mas pronto. A ficha era só uma página e não se podia pôr lá tudo o que tem o livro. O livro tem mais. As personagens, o enredo, o narrador, tudo muito bem feito. Há quem prefira um filme a um livro, mas eu não. Não cabe em nenhum filme do mundo tudo o que existe dentro de um livro.
– Deixa lá isso e vai direito ao que interessa – pediu a dra. Odete com má cara. E o Jorge engoliu em seco:
– Pois… O livro é bem feito. Vê-se que o autor não lhe escapou nada. Faz um retrato da vida daquela gente que andava por aqui no século passado, que só lido. Ficamos a saber como se vivia naquele tempo e como…
– Avança! – ordenou a dra. Odete.
O Jorge levantou-se e avançou para a professora.
– Onde é que vais? – disse ela.
O Jorge fitou a professora com os olhos arregalados, completamente confuso. Pois se ela o mandou avançar…
O Jorge regressou ao lugar muito lentamente. À volta só se ouviam risinhos, mas ele não deu por nada. Olhou de soslaio para o relógio e pareceu-lhe que já passava da hora. Afinal tocava ou não tocava?
Tocou no instante a seguir e o Jorge respirou fundo. Seguiu-se a habitual chinfrineira com todos a precipitarem-se para a saída. O Jorge recuperou o atraso e ganhou logo a dianteira, mas não lhe serviu de nada.
– Jorge! Tu não sais! – gritou a dra. Odete. – ficas para falar comigo.
O Jorge ficou, que remédio. O Joel piscou-lhe o olho a sorrir e desejou-lhe boa sorte. Depois esperou cinco minutos por ele cá fora, no corredor, e riu-se com vontade quando o viu chegar com cara de enterro.
– Então? Bateu-te?
– Ela descobriu que eu não li o livro. […] Vê lá! Até sexta-feira tenho de ler este e outro maior. Estou perdido! […]
Três dias depois já o Jorge tinha lido aquele livro e ainda outro, do mesmo autor, que foi buscar a casa do Joel. O tal Ruben Galeano era mesmo bom. Os livros dele contavam histórias emocionantes que envolviam completamente os seus leitores. Os olhos corriam as linhas e as páginas sem se dar por isso. E os finais? Eram quase sempre inesperados, surpreendentes.
Foi assim que o Jorge se descobriu um leitor.
Álvaro de Magalhães, O Assassino Leitor
[excerto com supressões]
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