quinta-feira, 29 de abril de 2010

Para a Escola

No velho casarão do convento é que era a aula. Aula de primeiras letras. A porta lá estava, amarela com fortes pinceladas vermelhas, ao cima da grande escadaria de pedra, tão suave que era um regalo subi-la. Obra de frades, os senhores calculam... Já tinha principiado a aula quando a Helena entrou comigo pela mão. Fez-se um silêncio nas bancadas, onde os rapazes mastigavam as suas lições e a sua tabuada, num ritmo cadenciado e monótono, cantarolando. E ouviu-se então a voz da Helena dizer para o senhor professor, um de óculos e cara rapada, falripas brancas por baixo do lenço vermelho, atado em nó sobre a testa:
- Muito bons-dias. Lá de casa mandam dizer que aqui está a encomendinha.
Oh! oh! a encomendinha era eu, que ia pela primeira vez à escola. Ali estava a encomendinha!
- Está bem, que fica entregue. E lá em casa como vão?
E enquanto o velho professor me tomava sobre os joelhos, a Helena enfiava-me no braço o cordão da saquinha vermelha, com borlas, onde ia metido nem eu sabia o quê. Meu pai é que lá sabia... E ali estava eu entre os joelhos do senhor professor, com o boné numa das mãos e a saquinha vermelha na outra, muito comprometido. A Helena, que sorria contrafeita, baixou-se para me dar um beijo, e disse-me adeus.
- Adeus, Josezinho, logo venho cá pelo menino.
Choraminguei, quis sair na companhia dela.
- Não, agora o menino fica – disse-me a Helena. - Isto aqui é a escola, é onde se aprende a ler. - E agachando-se, diante de mim: - Olhe tanto menino, vê?
- Mas fica tu também – disse-lhe eu então.
Nas bancadas houve hilaridade geral. O mestre teve de intervir, iracundo:
- Caluda, sua canalha! Não vêem que está gente de fora? Caluda, que vai tudo raso com bolaria!
Foi então que reparei em toda aquela rapaziada. Ah, eles eram todos meus conhecidos! Vivam lá vocês! E estavam todos alegres, p'los modos.
Reanimei-me. Então já eu podia ficar, estavam ali os meus amigalhotes, cheguei mesmo a rir das caretas que me faziam alguns, o Estêvão principalmente.
- Isto é preciso muita paciência, senhora Helena, muita soma de paciência. Um mestre precisa de ser um santo. - (Pausa. Olho duro sobre as bancadas.) – Mas está bem, diga lá que a encomendinha cá fica. Em boa hora entrasse...
- Entrou, ele há-de estudar. Ora há-de, Josezinho?
Das bancadas alguns acenavam-me que não, arregalando muito os olhos.
- É verdade, – insistiu por sua vez o professor – o menino há-de estudar as suas lições, não é assim?
- Diga, sim senhor – ensinou-me então a Helena. - Hei-de estudar muito e ser sossegadinho na aula, diga. - E a meia voz para o professor: - isto em casa é o vivo mafarrico; faz lá ideia?
Ele riu, já sabia; as crianças são todas assim, enquanto estão no mimo das mães. Mas uma vez metidas na escola, as coisas mudavam um pouco. E piscando o olho, designou a palmatória. A Helena ficou transida.
- Faz milagres, Senhora Helena. Digam lá o que disserem, olhe que faz milagres.



Trindade Coelho, Os Meus Amores (excerto)

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