sexta-feira, 14 de março de 2014

Não há estranhos para mim


Há muito, muito tempo, quando eu era criança, o meu avô levou-me a visitar o seu pomar.
― É o último bocadinho de terra que possuo, desde que vim viver para a cidade ― disse-me, enquanto cumprimentava toda a gente.
― Avô, como fazes para conhecer tanta gente? ― perguntei-lhe, enquanto corria para o acompanhar.
Ele parou para esperar por mim.
― Não os conheço pelo nome, conheço-os pelo coração. Sabes, querida, não há estranhos para mim.
― Porquê? ― perguntei, dando-lhe a mão.
Sorriu alegremente e respondeu:
― Porque eu e o meu coração somos livres.
Depois de caminharmos um pouco, disse:
— Sabias que, nos tempos tristes da escravatura, eu costumava andar com sementes de macieira no bolso, e acreditava que, quando fosse livre, haveria de as plantar no meu próprio pedacinho de terra?
― Não, não sabia.
― Um dia, dei-me conta de que isso só aconteceria quando nós mesmos lutássemos pela liberdade. Então, uma noite, fugimos.
― Quem é “nós”?
― Eu, a tua avó Polly e a tua mãe, que era bebé na altura ― respondeu, acariciando os meus caracóis. ― Tínhamos medo, claro, mas fomos cuidadosos.
Parou de falar, enquanto relembrava aqueles tempos…
― Quando chegámos ao Norte, já tínhamos passado por muitos estranhos e por muitos perigos. Estávamos junto ao rio Ohio e éramos quase livres, quando nos demos conta de que a fome e o cansaço eram demasiado grandes para continuarmos a andar. Então, escondemo-nos num celeiro ali perto. Dormimos toda a noite, como há muito não fazíamos. De madrugada, um homem veio mungir as vacas e a nossa bebé chorou. Ficámos petrificados. O nosso desespero era tanto que nos sentíamos capazes de atravessar o rio a nado, só para sermos livres! Nunca mais voltaríamos para trás!
Passados todos estes anos, o meu avô ainda tremia só de pensar naqueles tempos. Peguei-lhe na mão com força.
― O homem percebeu que não estava sozinho. Mas não olhou para a nossa cor; olhou para a nossa aflição. Era branco, mas ajudou-nos. Nunca me perguntou o nome, embora me dissesse o dele. Chamava-se James Stanton e era membro do Caminho-de-Ferro Clandestino.
― Oh! ― exclamei. ― Aquelas pessoas que ajudavam os escravos a viajar para o Norte?
― Aqueles que nos ajudaram quando mais precisávamos. James e a mulher, Sarah, não viram na tua mãe uma menina negra, apenas um bebé com fome. Deram-nos de comer e ajudaram-nos a atravessar o rio na noite seguinte.
― Isso é que foi sorte, avô! ― alegrei-me, agarrando-lhe a mão com força.
― Não sei se foi sorte, querida. Tínhamos de confiar em Deus. Tínhamos tomado a resolução correcta e nunca nos faltou a ajuda. E conseguimos. Sei o que é precisar de ajuda e recebê-la. Por mim, nenhum estranho ficará caído no chão sem que eu lhe estenda a mão.
Caminhámos em silêncio e o ar primaveril trazia até nós o cheiro fresco e doce das macieiras em flor.
― Quando chegámos ao Norte, a tua avó e eu trabalhámos arduamente para quem nos quisesse contratar. Arámos terra, apanhámos fruta, mungimos vacas, cosemos pão e ferrámos cavalos até termos dinheiro suficiente para comprarmos um pedaço de terra. Este!
E mostrou-me um belo pomar, cheio de macieiras em flor.
― Lembras-te das sementes com que eu andava sempre no bolso? Peguei nelas e plantei-as no nosso pedacinho de terra. De cada vez que plantava uma, lembrava-me de uma pessoa que me tinha ajudado. Olha para todas estas flores!
O meu avô tirou uma maçã de cada bolso.
― Essas vieram da tua cave, avô?
― Vieram. Guardei-as para as comermos juntos.
Sentámo-nos a comer.
― Avô, será que um dia poderei plantar uma semente de memória aqui?
O meu avô sorriu, comovido:
― Podes fazê-lo agora mesmo.
Plantei as sementes da maçã que comera. Enquanto isso, o meu avô observava os meus gestos, relembrando, sem dúvida, o que fizera muito anos atrás.
― Não me esquecerei do que fizeste hoje ― disse o meu avô, levando a mão ao peito.
― E eu não esquecerei o que me contaste, avô.
E nunca esqueci.
― Então agora percebes por que razão não há estranhos para mim ― disse o avô, com uma alegria imensa estampada no rosto, enquanto acenava para o céu.

Ann Grifalconi; Jerry Pinkney
Ain’t nobody a stranger to me
New York, Hyperion Books for Children, 2007

(Tradução e adaptação)



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