sexta-feira, 6 de maio de 2011

Os calções verdes do Bruno

Até a camarada professora ficou espantada e interrompeu a aula quando o Bruno entrou na sala. Não era só o que se via na mudança das roupas, mas também o que se podia cheirar com a chegada daquele Bruno tão lavadinho.
No intervalo, em vez de irmos todos brincar a correr, cada um ficou só espantado a passar perto do Bruno, mesmo a fingir que ia lá fazer outra coisa qualquer. A antiga blusa vermelha tinha sido substituída por uma camisa de manga curta esverdeada e flores brancas tipo Havai. Mas o mais espantoso era o Bruno não trazer os calções dele verdes justos com duas barras brancas de lado. A pele cheirava a sabonete azul limpo, as orelhas não tinham cera, as unhas cortadas e limpas, o cabelo lavado e cheio de gel. Até os óculos estavam limpos. Tortos mas limpos.
Lá fora a gritaria continuava. O Bruno, ao contrário dos últimos seis anos de partilha escolar, estava mais sério e mais triste.
Fiquei no fundo da sala. Eu era grande amigo do Bruno e mesmo assim não consegui entender aquela transformação. Olhei o pátio onde as  meninas  brincavam  “trinta e cinco vitórias”. Na porta, uma contra-luz do meio-dia iluminava a cara espantada da Romina. Eu olhava a Romina, o sol na porta e o Bruno também.
O mujimbo já tinha circulado lá fora e eu nem sabia. Havia uma explicação para tanto banho e perfumaria. Parece que o Bruno estava apaixonado pela Ró. A mãe do Bruno tinha contado à mãe do Hélder todos os acontecimentos incríveis da tarde anterior: a procura de um bom perfume, o gel no cabelo, os sapatos limpos e brilhantes, a camisa de botões. A mãe do Bruno disse à mãe do Hélder, “foi ele mesmo que me chamou para eu lhe esfregar as costas”.
Depois do intervalo o Bruno passou-me secretamente a carta. Começava assim:

            Romina: nos últimos dias já não consigo lanchar pão com marmelada e manteiga, e mesmo que a minha mãe faça batatas fritas nunca tenho apetite de comer. Ainda por cima de noite só sonho com os caracóis dos teus cabelos tipo cacho de uva…

A carta continuava bonita como eu nunca soube que o Bruno sabia escrever assim. Ele tinha a cara afundada nos braços, parecia adormecido, eu lia a carta sem acreditar que o Bruno tinha escrito aquilo mas os erros de português eram muito dele mesmo. Era uma das cartas de amor mais bonitas que ia ler na minha vida, e eu próprio, anos mais tarde, ia escrever uma carta de amor também muito bonita, mas nunca tão sincera como aquela.
A camarada professora era muito má. Veio a correr e riu-se porque eu tinha lágrimas nos olhos. Pegou na carta e rasgou tudo em pedacinhos tão pequenos como as minhas lágrimas e as do Bruno. A Romina desconfiou de alguma coisa, porque também tinha os olhos molhados.
O sino tocou. Saímos. Era o último tempo.
No dia seguinte, com um riso que era também de tristeza e uma espécie de saudade, o Bruno apareceu com a blusa dele vermelha e os calções verdes justos com duas riscas brancas de lado. Deu a gargalhada dele que incomodava a escola toda e veio brincar connosco.
Na porta da sala, uma contra-luz amarela do meio-dia iluminava a cara bonita da Romina e os olhos dela molhados com lágrimas de ternura. E o Bruno também.
Ondjaki, in Os da Minha Rua

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