sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Baile

“Desta vez é que é.”

“Desta vez é que não falha” pensa Matilde.

Para isso, de resto, já começou a fazer dieta. Nada de se empanturrar de bolicaos nos intervalos das aulas, nada de se encher de coca-cola, nem mesmo da que tem “diet” escrito na garrafa, porque a Tatiana, diplomada em dietas infalíveis, já lhe garantiu que isso não passa de uma grande aldrabice e, com “diet” ou sem “diet”, aquela porcaria engorda na mesma. Por isso, a partir de agora, só água, água pura e cristalina “se é que existe ainda água pura e cristalina nas nossas torneiras”, como está sempre a resmungar o pai.

Matilde olha para o vestido, pendurado no armário, com um plástico por cima para não apanhar pó nem ganhar vincos e já está a ver a cara do Ruca, no momento em que ela entrar no ginásio. É dessa que há-de ir com ele ao cinema. Com um bocadinho de sorte às docas. Se o pai estiver pelos ajustes, evidentemente.

A Tatiana está sempre a dizer que o Ruca é parvo, e que só mesmo outra parva como a Matilde para engraçar com um fulano cheio de borbulhas, cabelo a escorrer óleo, a mascar pastilha elástica vinte e quatro horas por dia, e com o vocabulário reduzido a “fogo” e “tas a ver”. “E isto, claro” acrescenta a Tatiana, “só nos dias de grande inspiração”.

A Tatiana não sabe o que diz.

Dor de cotovelo, é o que é.

O Ruca é igualzinho a um artista de cinema. Se houvesse justiça neste mundo, ao tempo que ele já devia ter sido convidado a fazer telenovelas, em vez de estar a aturar as professoras da escola.

Um dia, Matilde caiu na asneira de dizer isto à Tatiana. As gargalhadas dela ouviram-se no fim da rua.

- Um artista de cinema? Claro! Entre ele e o Leonardo Di Caprio não há mesmo diferença nenhuma!

Matilde amuou:

- O Leonardo Di Caprio é muito gordo. Não sei o que tu vês nele.

Ao princípio, o Ruca não tinha gostado nada da ideia.

- Um baile? Fogo! Vocês devem ter todos batido com a cabeça nalgum sítio! Tás-me a ver a mim, todo fatela, a ficar ali com uma chavala, nem atrasa nem avança, fogo!, com aquelas músicas muito foleiras, e aquela cambada de cromos a olhar para a gente, fogo!, vocês passaram-se meus, passaram-se!

Tatiana mirava-o de alto a baixo, com um ar de olha-se-o-Leonardo-Di-Caprio-alguma-vez-falaria-assim, mas ele não percebeu.

Segundo Tatiana, o Ruca levava sempre o dobro do tempo que uma pessoa normal levaria a entender uma simples frase, sujeito, predicado, complemento directo.

Matilde ficava muito ofendida, quando a ouvia.

Tu é que não percebes nada de nada – dizia.

- O Ruca pensa sempre muito bem antes de responder às perguntas. É só isso. E isso era o que muito boa gente devia fazer também.

- Um baile… - resmungou novamente o Ruca. – Fogo!

Acabou por encolher os ombros e enfiou duas pastilhas elásticas para dentro da boca. Voltou a resmungar qualquer coisa entredentes, e desapareceu rua abaixo.

A ideia do baile nem tinha sido delas.

A directora de turma é que viera com essa história.

- Um baile – repetiu ela. – Mas um baile a preceito.

- O que é um baile a preceito, setôra? – perguntou o Fábio.

- Um baile com deve ser – esclareceu ela. – Com valsas, com boleros, com slows

- Fogo! A cota passou-se! – bichanou o Ruca para a Matilde. – O que é que ela tá a dizer?

A Matilde fez-lhe um sinal para que se calasse.

Então o Ruca virou-se para a Tatiana.

- Tu conheces esta tanga de que ela está a falar?

A Tatiana também encolheu os ombros. O Ruca enfiou mais duas pastilhas para a boca e desistiu de fazer perguntas.

A setôra ia embalada. De olhos semicerrados, voara certamente para muito longe dali, para um lugar onde as pessoas ainda dançavam ao som de músicas com aqueles estranhos nomes.

- Ó setôra, e podíamos convidar os “Anjos”?

A setôra de repente acordou.

- Anjos? Mas o que é que os anjos têm a ver com isto?

- Ó setôra, são aqueles “Anjos” que cantam! A setôra sabe…

A setôra não sabia. Disse que falara no baile só para ser simpática porque lhe tinha chegado aos ouvidos que eles queriam angariar fundos (“an… quê?” perguntara o Ruca ao ouvido da Matilde) para irem a Espanha no fim do ano, e o baile lhe parecera uma boa ideia. Se o Conselho Executivo estivesse de acordo, até podiam utilizar o ginásio da escola.

- Mas – acrescentou – não quero cá dessas músicas malucas que vocês costumam ouvir. Para isso, vão lá para a Vinte e Quatro de Julho ou para as docas (“bora minha!” bichanou o Ruca, e a Matilde teve de lhe dar uma cotovelada para ver se o acalmava), mas aqui não! Vamos fazer um baile a preceito, como deve ser, com os rapazes a irem buscar as raparigas (“buscar as chavalas para quê?”, perguntou intrigado o Ruca, antes de levar com outra cotovelada da Matilde), e evidentemente, os vossos pais seriam também convidados (“Os cotas, minha?! Fogo!” berrou espantado o Ruca, levando nessa altura uma canelada da Tatiana), uma coisa mesmo a sério.

A setôra estava muito feliz com a ideia.

Alice Vieira, “Valsa a Três Tempos” (excerto), in Trisavó de Pistola à Cinta

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