quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dom Caio

Era um alfaiate muito poltrão, que estava trabalhando à porta da rua; como ele tinha medo de tudo, o seu gosto era fingir-se valente. Vai de uma vez viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. Daí em diante não fazia senão gabar-se:

- Eu cá mato sete de uma vez!

Ora o rei andava muito aparvalhado, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general Dom Caio, que era o maior valente que havia, e as tropas do inimigo já vinham contra ele, porque sabiam que não tinha quem mandasse a combatê----las. Os que ouviram o alfaiate andar a dizer por toda a parte: “Eu cá mato sete de uma vez!” foram logo metê-lo no bico do rei, que se lembrou de que quem era tão valente seria capaz de ocupar o posto de Dom Caio.

Veio o alfaiate à presença do rei que lhe perguntou:

- É verdade que matas sete de uma vez?

- Saberá Vossa Majestade que sim.

- Então nesse caso vais comandar as minhas tropas e atacar os inimigos que me estão cercando.

Mandou vir o fardamento de Dom Caio e fê-lo vestir ao alfaiate, que era muito baixinho, e que ficou com o chapéu de bicos enterrado até às orelhas; depois disse que trouxessem o cavalo branco de Dom Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, e ele já estava a tremer como varas verdes; assim que o cavalo sentiu as esporas botou à desfilada, e o alfaiate a gritar:

- Eu caio, eu caio!

Todos os que ouviam por onde passavam, diziam:

- Ele agora diz que é Dom caio; já temos homem.

O cavalo, que andava acostumado às escaramuças, correu para o sítio em que se combatia, e o alfaiate com medo de cair agarrado às crinas, a gritar como um desesperado:

- Eu caio, eu caio!

O inimigo, assim que viu o cavalo branco do general valente e ouviu o grito: “Eu caio, eu caio!”, conheceu o perigo em que estava, e disseram os soldados uns para os outros:

- Estamos perdidos, que lá vem Dom Caio; lá vem o Dom Caio!

E botaram a fugir à debandada; os soldados do rei foram-lhes no encalço e mataram-nos, e o alfaiate ganhou assim a batalha só em agarrar-se ao pescoço do cavalo e em gritar: “Eu caio”.

O rei ficou muito contente com ele e, em paga da vitória, deu-lhe a princesa em casamento, e ninguém fazia senão louvar o sucessor de Dom caio pela sua coragem.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais Do Povo Português

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