É já na próxima segunda-feira, dia 3 de junho, que a nossa biblioteca receberá a visita da escritora Inês Lampreia para um encontro com turmas do 10º ano da professora Ana Brissos Pereira.
Inês Lampreia (Lisboa/1979), recebeu a sua primeira
máquina de escrever aos 12 anos e desde então a escrita tem sido uma constante.
Publicou pela primeira vez em 2010 o conto “Dias no Escafandro” pela Edições
Pasárgada e recebeu o 2º prémio para conto literário da Casa do Alentejo com
a história “Cinco Dedos de Cortiça”, em 2011.
Formada em Jornalismo, mestre em Comunicação,
Cultura e Tecnologias da Informação, conta com um percurso profissional
variado. No jornalismo, os seus trabalhos destacam-se nas áreas da cultura e
ciência. Entre outras experiências, editou durante quatro anos a revista VEGA.
Foi directora de produção do MONSTRA – Festival de Animação de Lisboa entre
2009 e 2011 e conceptualiza e desenvolve projectos no âmbito das metodologias
pedagógicas alternativas nas áreas da poesia visual e códigos de linguagem, ao
longo dos últimos dez anos, na Fundação Calouste Gulbenkian e em outros
espaços. Escreveu recentemente um guião sobre os indigentes, massacres e
episódios obscuros da cidade de Lisboa para a Ghost Tour Portugal e
prepara neste momento o seu primeiro romance.
Abaixo poderá ler a história "Cinco Dedos de Cortiça"
Cinco dedos de cortiça
O pincel
varria lentamente a unha deixando verniz cor de sangue apegar-se. Lá fora o vento também
deslizava ao longo do montado. Esta era a unha do dedo mata-piolhos da mão esquerda
de Albertina. O vento, esse, vinha do mar dizendo que o Outono chegara.
Albertina
pousou o frasquinho de verniz, deslizando a mão de imediato para a mesa que lhe servia
de bengala todas as manhãs. Incidiu o corpo sobre a mesa de camilha e arrastou os
pés até à janela de onde mirou o sobreiro. Eram perto das 6 da manhã.
A unha do
dedo mata-piolhos da mão esquerda de Albertina parecia existir em dois mundos
distintos. Metade sustentava uma lágrima vermelha, cor de sangue. “Tal qual um rio
púrpura”, pensou Albertina. A outra mantinha a unha encardida. Albertina sorriu e voltou a
mirar o sobreiro. Suspirou e de novo arrastou o corpo, rojando os pés até à mesa de
camilha. Deixou-se cair na poltrona, pegou no frasquinho de verniz e, novamente,
fez deslizar o pincel. Absorta no silêncio matinal, que só os melros perturbavam
ligeiramente, pensou:
Se o meu pai
aqui estivesse, não seria pintada, não! Eras malino que nem uma vaca brava!
Naquele tempo ou se tinha ardósia ou a enxada na mão. A mim calhou-me a enxada. As
meninas de ardósia eram poucas e leitosas. Não havia nesga de sol que lhes chegasse à
cara. Hum! Caras pálidas que nem lixívia. Já eu parecia saída de uma pocilga.
Sempre encardida… ainda pareço! Olha-me estas mãos, Albertina! Olha-me
p’ra
isto?!... Ora, são as de quem tem o campo nas unhas!
Pois é… não
tínhamos terra, mas tivemos sempre mãos para a labuta, não fosse o meu pai
agricultor.”Se querem comer têm de trabalhar”, dizia ele. A mim, com cinco
anos, e aos meus
irmãos. A eles pesava as agruras da terra. Eu lá arrancava o pasto. Ficava para trás
enquanto as mulheres mondavam. E à falta de brincadeira, sempre arranjava pretexto
para olhar uma libelinha que esvoaçava, corria atrás de um lagarto fugidio ou colhia as
palhinhas secas para fazer tranças na boneca de pano que a Maria me deu.
Coitada da
minha querida irmã, mal tinha tempo para dormir mesmo assim fez-me aquela
boneca. Só tive aquela, também. Encardiu num instante… Ai! A pureza de criança
permite tudo, até viver a miséria sem aviso!
Mas eu era
rabina… Punha a infusinha à cabeça e ia buscar água à fonte. Ajudava no que podia,
pois o pai, ruim como as cobras, não me podia ver quieta. A escola era uma miragem. Não
tinha ardósia... Mas aos sete anos já andava atrás das moçoilas, não as largava p’ra
que me ensinassem as primeiras letras. De pouco serviu, pois levo uma eternidade a
ler as contas da água que me chegam a casa.
-
Os
pensamentos de Albertina foram surpreendidos pela batida na janela. Lá fora
estava a vizinha
Paula. Albertina pousou o frasquinho de verniz na mesa, voltou a fazer o curto caminho e de
mãos encarquilhadas abriu a janela.
- Então,
moça?! – disse de soslaio.
- Bom dia,
ti’ Albertina! Que tal vai isso? – respondeu vivamente Paula.
- Vai-se
indo. De velha não passo. E tu?
- Ora! Vou
bulir. Que é que se há-de fazer?! Tem que se ganhar a vida! – olhou o horizonte e enlaçando os braços
acima do peito, prosseguiu - Vizinha, então não ouviu dizer que a
ti Custódia morreu? Não é que ontem estava a ir p’ra casa e a mulher vinha da horta? Já
viu isto? Afinal está viva!
- Ah, moça,
aqui nesta terra morre-se muitas vezes! As pessoas não têm nada p’ra fazer!
- E a ti’
Albertina não vai até ao centro, hoje? Também ouvi dizer que tem lá um amigo… -
indagou Paula com um ar matreiro.
- Moça? Não
ias trabalhar? Ou o teu trabalho é dar à língua? A minha irmã Maria, que Deus tem,
era muito inteligente, dizia que o que as pessoas mais têm é malícia.
- Ai, ti’
Albertina! Não foi por mal!
- Pois,
pois. Vai andando, vai andado. – disse Albertina fechando a janela bruscamente.
Paula,
indignada, pôs-se a caminho remoendo palavras.
- Jacinto,
se estivesses aqui, não me chagavam o juízo! – lamentou Albertina. Mais uma vez,
arrastou os pés até à mesa de camilha e deixou-se cair na cova da poltrona que continha a
forma das suas costas de tantos anos as suportar, horas a fio. Albertina pegou no
frasquinho de verniz e decidiu pintar o dedo fura-bolos da mão esquerda.
Enquanto molhava o
pincel na tinta vermelha…
Sofreste de
tanta chacota, Albertina. Ai! É preciso uma vida inteira p´ra ganhar forças para tanta
mofa. Mas, em moça não tinha força. Se a minha mãe me tem dito mais cedo, havia
de bradar a todos assim como um leão. Só que dizem que o silêncio é rei quando não
se quer pôr a verdade a descoberto. Ai isso é!
Bem me
lembro. Tinha os meus onze anos quando fui para a apanha da azeitona. Havia lá um moço,
linguarudo, que mal soube que era filha do Zacarias começou a troçar de mim. “És
como uma sela à marialva! Não tens borrainas!”, dizia. Não percebia o que queria.
Ingénua. Nunca tinha maldade e naquele tempo falava-se muito, mas era só barulho para
pássaros. Dizer-se as coisas lá de dentro, do fundo das entranhas, não era hábito.
Cada vez que
o moço linguarudo abria a boca ficava rosada e encapuçava-me toda. E nem pensar
em levar a troça p’ra casa, pois nunca se sabia o que ia aprontar o pai.
Assim, não
demorou muito para me tornar afoita. Mal diziam o meu nome, já as orelhas me
cresciam como as da lebre. “És casta de uva preta”, “Olha, o cabo de atracar
vergas!” continuava o moço, dias a fio. Decidi tirar aquilo a limpo e enquanto descobria o
que cada palavra significava, fui-lhe dando coices. Sempre que ele se aproximava
com um sorriso lânguido cá para o lado da minha apanha, ajeitava de mansinho todos
os provérbios que a minha mãe costumava dizer.
“Então moça,
já és cá da nossa espécie? Ah!Ah!Ah!”, dizia-me ele e logo de arremessa lhe mandava
:
- “Diz outra
como essa e ganhas uma peça!”
- Ai que a
menina tem língua, afinal?! – respondia o moçoilo.
-Ora,
conforme o toque assim é a dança! Vai dar bolota aos porcos, que eu não
te aturo!
Com o tempo
ganhei firmeza e alento. De tal forma foi que fiquei apelidada de Tina Zurra, mas
assim os maldizentes e linguarudos meteram-se na toca. Não foi, contudo, tão bem
conseguido o meu encontro com o saber das palavras. É que o moço tinha razão e era bastarda de
nascença! O meu pai, danado como uma fuinha, não passava de meu padrasto,
ouvi eu a mãe dizer numa noite de briga. Enfim, tinha a senhora minha mãe
andado com uma barriga de água durante meses e quando a lua virou saiu-lhe esta gaiata.
A vergonha era mais que muita e logo se arrumou o casório com o Zacarias,
homem pobre de espírito, que não saía da cepa torta. Daí em diante, nasceram
meus irmãos, mas, eu, afinal, era bastarda.
Albertina
olhou para o dedo pai-de-todos da mão esquerda, esfregou-o como se quisesse alisar os
grumos que ornam a unha visivelmente deformada. Pegou o pincel cheio de verniz,
molhou e encostou na borda do frasco várias vezes, enquanto fitava a unha.
Pensou:
Agora é a
tua vez. És feia, pavorosa, mas forte que nem um casco. Podiam ter-te arrancado
100 vezes que havias de voltar. Cada vez mais feia, cada vez mais leprosa, mais grossa
e deformada. E apesar disso a persistir. Tal qual eu. Inteiriçada, dura… que nem
tronco de sobreiro.
Andava-se de
cabeça agachada, olhos prostrados na terra, a voz sumida atormentavanos o espírito,
mas pouco mais do que uma zanga interna ressoava. Não se podia falar com ninguém
e qualquer deslize de liberdade fazia-nos ser escopo. Só quando caminhávamos
ao alvor para pegar na monda de sol a sol, as mulheres falavam.
“Agente tem
de se juntar!”, dizia a Ti’ Custódia. “Moças, hoje às 6 da tarde paramos de
trabalhar. Não é justo!”, rematava a Ti’ Antónia. As outras assentiam.
Eu era
mulherzinha, mas já compreendia a revolta. Nos outros e em mim. Não tinha o entendimento
claro do que se passava e não me atrevia a dizer à mãe as conversas que tinham as
mulheres durante a caminhada, mas roíam-me cá por dentro as injustiças!
Por isso,
dava conta de todas as manigâncias e quando dei por mim, ia às reuniões nocturnas.
Falava-se de revolução e os pensadores engendravam trabalhos. Ajudava a esconder os
fugidos, passava informações nos montados e até distribuía jornais. Fazia de tudo para
ver a mudança. Mas, ela era lenta, tal como nós a ver a vida acontecer-nos.
Numa dessas
noites, reuníamos no monte Branco, em casas abandonadas, quando rebentou a
porta e entraram guardas. Éramos mulheres, homens e crianças aos berros, fugindo pelo
campo fora, naquele breu aterrador. Vi um gaiato aterrorizado por um guarda e a pobre
mãe a deixar-se prender para o soltarem. Mais parecíamos carneiros desnorteados.
Corri tal como uma lebre cega. Mas na escuridão que nos salve o morcego! Caí
no meio de silvas e, para além de picos, ganhei algemas.
Já tinha
ouvido falar da choldra e foi para lá que me levaram, como a um saco de batatas.
Primeiro para a cela da vila, depois da cidade e, por fim, a prisão. Senti,
pela primeira vez
o medo ao encontrar-me dentro de quatro paredes brancas. A luz intensa ardia-me os
olhos e o temor ganhou forma de labirinto sem explicação.
Passa-nos
tudo pela cabeça, principalmente, falar. Aliás, isso, não nos sai da cabeça! A mim
calhou-me, entre outras, a guarda Maria que, embora apelidada de “demo”, era o exemplo de
uma mente simples. Primeiro, demonstrou o poder que tinha, torturando e achincalhando
- estive três dias e três noites em estátua. Batia-me nos braços com o cassetete
sempre que deslizavam, já adormecidos pela dor; Depois, como eu não cedia, sentia-se
desafiada. Piorou. Tive medo de morrer. Sempre em isolamento, não me deixava dormir. Pensei não
aguentar tanto, mas os dias passaram e, embora não
sentisse
mais o corpo, mantinha-se a sofrida sensação de vitória; Por fim, o ressabiamento
era tanto que, não tendo frutos do seu poder, aplicou a pena – arrancou-me a unha do
dedo pai-de-todos da mão esquerda com os olhos cravados nos meus.
-
Albertina
esfregou a unha do dedo vizinho do mindinho da mão esquerda no vestido.
Tentava
tirar-lhe qualquer poeira agarrada, muito embora não pusesse as mãos na terra há muitos
anos. Olhou pela janela, franziu o sobrolho para mirar o único ramo do sobreiro que
conseguia ver daquela posição e voltou a dedicar-se à pintura. Pensou:
O amor
chegou-me de improviso. Depois de tanta dor, não julguei vir a sentir tal
coisa.
Foi por
pouco que não o conhecia. As moças andavam na fábrica do tomate, mas não havia vaga
para mim. Até que a Antonieta foi para o monte de São Domingos e eu ocupei o
lugar.
Arrumaram-me
à plataforma de selecção. Os tomates vinham a toda a velocidade num tapete
rolante e eu tinha de ser rápida a tirar os podres, deformados e pequenos. Num instante
fiquei sabedora do ofício.
Nunca ligara
aos rapazes até então. Fazia chacota deles e não lhes dava abébias nenhumas.
Mas um dia, enquanto escolhia os tomates, olhei de relance para a zona de recepção,
onde os homens se juntavam na galhofa… e vi Jacinto. Apesar de estar bem longe,
aquelas costas largas e pele trigueira deixaram-me curiosa. Decidi fazer a minha pausa.
Dirigi-me ao pátio de mãos nos bolsos e ar rijo. Ali todos cheirávamos a tomate, mas
éramos diferentes. Passei pelos homens de cabeça erguida, sem falar a nenhum deles
e, pelo canto do olho, observei-o. Era bonito… tinha um ar distinto.
A partir
desse dia, embora utilizássemos sempre a bata do trabalho, fazia por me sentir mais mulher.
Arranjava as saias com a caixa de costura da minha mãe e até comprei uma
água-de-colónia que só metia por detrás das orelhas antes da pausa. Ele lá
estava também, no
pátio, todos os dias, a olhar para mim. Mas não me atrevia a dirigir-lhe a palavra.
Sempre que o fazia era rezingona, como para todos os outros. E além disso era uma
vergonha naquela altura andarmos na conversa com homens.
Mas, numa
manhã fresca de Verão, ia eu na caminhada para a fábrica quando senti alguém
alcançando-me. Imaginei que fosse uma das mulheres atrasada, mas senti-lhe o cheiro mal
se pôs ao meu lado. Cumprimentou-me. Eu olhei-o de soslaio dos pés à cabeça, e
andei ainda mais depressa. Jacinto acompanhou-me o passo.
Desavergonhado
disse: “Sabes Albertina, gosto de ti!” – parei especada a olhá-lo e os montados,
por detrás das suas costas, engalfinhados uns nos outros, deram sustento ao prado de
papoilas. Senti crescerem-me raízes pelo corpo acima - como se o amor que havia em mim
tivesse nascido num só dia.
Comprámos
esta casinha e a parcela de terra do outro lado da rua. Ainda tinha uns quantos
metros quadrados e um sobreiro imponente, de copa larga. Parecia conter tudo o que
era necessário aos olhos do Jacinto. Sombra para ovelhas e porcos, pasto para lhes
encher o bucho e terra capaz de fazer crescer alimento. Fiquei feliz pelo meu Jacinto.
Mas, o homem não tardou a viciar-se no raio da árvore! Mirava-a da janela o dia todo!
A princípio
achei que cuidava de olhar pelos bichos, mas com o tempo apercebi-me de que afinal era o sobreiro que
ele tanto fitava. Estraguei a cabeça com pensar na razão de tal vício
e cheguei a perguntar-lhe uma vez.
- Jacinto,
escuta, porque olhas tu o sobreiro a toda a hora? - Nunca me disse. Mas vim a saber que
ele queria era tirar-lhe a cortiça. Achei uma tolice, pois claro! Um sobreiro não dava
dinheiro nenhum, embora, verdade seja dita, este era grande como um silo.
Nessa altura
abriu a mina e quando há míngua de trabalho todos os homens correm às oportunidades.
Claro que o meu Jacinto ficou, pois era forte e bom trabalhador. Mas eu, cá no
íntimo, temia a terra incerta como quem teme o inferno. Vê-lo partir todas as manhãs
apertava-me o coração. Sentia o peso da desgraça. Ele não ligava. Dizia sempre: “não
me vai acontecer nada, mas se acontecer tens sempre o nosso sobreiro”.
Resmungava
em desaforo! Não queria um sobreiro, queria-o a ele!
Até que um
dia bateram as seis da tarde e Jacinto não apareceu. Só duas horas depois, o vizinho
Marcelino, acompanhado de dois guardas, veio largar a má notícia. Joguei as mãos à cara
num pranto. Estava morto, pois a Terra não mede acções. Ai! A dor carcomia-me
os ossos, arrafanhava-me o espírito. Senti que me arrancavam os dentes a frio,
partiam os dedos e me esventravam toda! Sofri como só um ser humano consegue.
O meu
Jacinto saiu de lá aos bocadinhos… O chão partiu-o como se fosse um torrão de areia.
Voltei à mina vezes sem conta, não fosse terem deixado lá algum pedaço do meu amor. Estava
morto, mas todo no mesmo sítio. Isso é que eu não suportava… pensá-lo aqui e
acolá, espalhado como bagulho. A bem da verdade, o corpo ainda faz a gente sentir que
viveu com a pessoa. Quando não há corpo, a memória parece querer-se-nos fugir.
Albertina
pousou o verniz na mesa de camilha e recostou-se na poltrona. Já não aguentava
muito tempo de pescoço pendido e isto de pintar as unhas exigia muita concentração.
Ajeitou a almofada ao pescoço e deixou-se levar pelo chilrear dos melros.
Dormitou
algum tempo e quando voltou a si, bastou-lhe vislumbrar para que lado pendia a
sombra do sobreiro através da janela para perceber que as horas tinham passado.
Levantou-se a todo o custo. Queria sentir a brisa da tarde. Encostou-se à ombreira da
porta e ficou a examinar o sobreiro no outro lado da rua, ao cimo de uma pequena colina,
majestoso, seguro e isolado. Albertina retesou a mão esquerda o quanto
pode, moveu
o dedo mindinho, sorrindo. Pensou:
Um dia
inteiro para pintar as unhas. Estou velha... E ainda me falta o mindinho que mal tem unha
para pintar. É tão pequena como tudo aquilo que a vida me tem dito desde a
morte do meu Jacinto. Insignificâncias… e já lá vão quarenta anos. Tão nova fiquei viúva
e tão nova voltou-me a raiva à pele. Se não tem sido o sobreiro, o Jacinto havia de ter
envelhecido comigo, assim, a cobiça de ter outras árvores como aquela, tirar
cortiça e ganhar muito dinheiro, levaram-no para a mina. E da mina para a
terra. De vez.
Durante
quarenta anos vi o sobreiro crescer e a dor da perda minguar. Mas ela não desaparece,
tal como o sobreiro ficará para lá da minha morte. Não sei porque não o mandei
cortar, porque o mantenho imponente à minha frente e todo este tempo aguentei a sua
imagem. Mas, não naquela noite. Depois de enterrar os pedacinhos de Jacinto, o vento
levantou-se como que vindo sozinho acompanhar o luto. Era tanta a ventania que a noite estava feita restolho.
Só se ouviam os ramos do sobreiro sacudindo a folhagem.
Aquilo
começou a meter-me uns nervos! A raiva de outrora, de quando era moça, estava a
voltar e a trepar por mim acima. De cada vez que a ventania soava, assim o sobreiro se
movia com toda a força. A nervura chegou-me à venta e não aguentei mais!
Só eu podia
estar em luto, só eu tinha de chorar a morte. Como podia o sobreiro não se calar
naquela noite?!
Peguei no
machado, desvairada. Saí descalça pelo campo afora. A noite de breu estava demoníaca,
já que o vento tomava conta de dar voz a tudo. Os meus cabelos esvoaçavam
em loucura e eu, com os olhos em fogo, não tinha medo. Mal podia acreditar
que se me tinham levado o marido e o sobreiro ficara.
Nem lhe
cheguei perto e já o machado o abria. Golpeei a cortiça acertando na fenda mais
profunda do enguiado*. Ao mesmo tempo, torci o gume do machado para separar a prancha do
entrecasco com os dentes cerrados. Se o ódio fosse medido na minha mão,
destruía-lhe o corpo todo de uma só vez. Contando que a malícia estava em mim, assim que
ouvi o "toque" do machado, curto, firme e seco, vi que a cortiça
estava a dar mal, e logo
um arrepio na espinha subiu-me até aos punhos. A vingança prometida...
Não separei,
não tracei, não meti gume do machado entre a barriga da prancha, não extraí, nem
descalcei. Só deixei sequelas e mutilei aquele corpo vivo até lhe alterar a geometria.
Quando acabei, a casca era de um vermelho alaranjado… e via o crime no meu suor.
Lágrimas confundiram-se com vento, com pó. Que culpa tinha o sobreiro… agora
tirara-lhe a substância, metera-o a nu de propósito e sem remorsos. O único consolo era
que ele estava que nem eu – dorido por dentro e por fora, com feridas abertas
difíceis de sarar.
Nunca mais
me cheguei a ele, tal qual um cão se encolhe ao dono quando faz asneira.
Magoei-o
porque estava em dor e, afinal de contas, todos os dias o observo da janela, e vejo-o no
montado com a sua copa ampla, de tronco ramificado em grossas pernadas vestidas por
casca acinzentada, espessa, fendida. Não sei se gosto dele, se o protejo ou se perpétuo
a paixão do meu Jacinto.
Albertina
olhou novamente o dedo mindinho de esguelha, ainda por pintar, voltou para dentro de
casa, pegou no cajado e saiu para a rua. Levava, aproximadamente, quarenta e cinco
minutos a percorrer o caminho até ao centro de dia, a 600 metros de sua casa.
Parava cinco
vezes para respirar fundo, dava passos muito pequenos e pendia para o cajado
precavendo tropeçar em alguma pedra.
- Então ‘Ti
Albertina? Vai até ao centro? – disse Paula de passagem.
- Vou.
- Mas, a
esta hora? Não é já tarde? – continuou Paula sem parar no seu percurso para casa.
- Ora, o que
é que tens a ver com isso?!
-Ai, ‘Ti
Albertina! Está cada vez mais azeda!
- Sempre
fui!Não vou ser doce agora, depois de velha?!
Albertina
acelerou o passo, contando que não conseguia andar mais depressa. Mas o esforço
demonstrava atitude. Estendeu a mão à frente da cara, fixou o dedo mindinho e pensou:
Este não
pinto, já que não há tinta cor de cortiça…
* ranhuras da casca do
Sobreiro