sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A Senhora dos livros

A minha família e eu vivemos num sítio pertinho do céu. A nossa casa fica situada num local tão alto que quase nunca vemos ninguém, a não ser falcões a planar e animais a esconder-se por entre as árvores.
Chamo-me Cal e não sou nem o mais velho nem o mais novo dos irmãos. Mas, como sou o rapaz mais velho, ajudo o meu pai a lavrar e a ir buscar as ovelhas quando, às vezes, elas se escapam. Também me acontece trazer a vaca para casa ao pôr-do-sol, e ainda bem que o faço. É que a minha irmã Lark passa o dia todo a ler.
O meu pai diz sempre que nunca se viu uma rapariga tão superleitora... Cá comigo não é assim. Não nasci para ficar sentado e quieto a olhar para quatro garatujas. E não acho graça nenhuma a que a Lark se arme em professora, porque a única escola que existe fica a quilómetros daqui, e ela dificilmente lá irá chegar. Por isso é que ela quer ensinar-nos. Só que, a mim, a escola não me interessa!
Sou sempre o primeiro a ouvir o ruído dos cascos e a ver a égua alazã da cor do barro. Sou o primeiro a dar-me conta de que o ginete não é um homem, mas uma senhora com calças de montar e cabeça bem erguida.
É claro que recebemos a forasteira de braços abertos, porque pessoa mais simpática não há. Depois de tomar chá, põe os alforges em cima da mesa e até parece ouro o que tira de lá de dentro. Os olhos da Lark põem-se a brilhar como moedas e a minha irmã não consegue ter as mãos quietas, como se quisesse apropriar-se de um tesouro.
Na realidade, o que a senhora traz não é tesouro nenhum, pelo menos a meu ver. São livros! Um monte de livros que ela, sozinha, carregou pela encosta acima. Um dia inteiro a cavalo para nada! É o que eu digo! Porque, se ela os quisesse vender, como faz o caldeireiro, que anda por aí com panelas, sertãs e outras coisas, veria logo que nós nem um centavo sequer temos para gastar… Muito menos em livros velhos e inúteis!
O meu pai põe-se a fitar a Lark e pigarreia. Então propõe à Senhora dos livros:
— Fazemos um contrato. Em troca de um livro dou-lhe uma saca de framboesas.
Aperto bem as mãos atrás das costas.
Quero falar, mas não me atrevo. As framboesas, fui eu que as apanhei… Para fazer uma tarte, não para trocar por um livro! Quando vejo a senhora recusar, até pasmo. Não aceita uma saca de framboesas, nem um molho de legumes, nem nada do que o meu pai lhe quer oferecer. Os livros não custam dinheiro; são de graça, como o ar. Ainda por cima, dentro de quinze dias, voltará para os trocar por outros! Cá para mim, tanto se me dá que a Senhora traga livros ou que não encontre o caminho até nossa casa. O que me espanta é que, mesmo que chova a cântaros, haja neve ou faça frio, ela volte sempre!
Certo dia de manhã, a terra acordou mais branca do que a barba do nosso avô. O vento uivava como lince em plena escuridão e apertámo-nos todos diante da lareira, pois, num dia desses, ninguém faz nada. Com um tempo assim, até os animaizinhos da floresta se deixam ficar bem aconchegados.
De repente, ouviram-se umas pancadinhas na janela. Era a Senhora dos livros, abrigada até à ponta dos cabelos! Para não apanharmos frio, fez a troca através da porta entreaberta. E quando o meu pai lhe pediu que dormisse em nossa casa, não se deixou convencer:
— A égua leva-me de volta — respondeu.
Fiquei de boca aberta a vê-la afastar-se. Pensei que era uma pessoa muito corajosa e tive vontade de saber por que é que a Senhora dos livros se arriscava a apanhar uma constipação ou coisa bem pior. Escolhi um livro com letras e desenhos e pedi à minha irmã Lark:
— Ensina-me o que está aqui, por favor.
A minha irmã não se riu nem troçou de mim.
Arranjou um lugar aconchegado e, em voz baixa, pôs-se a ler.
O meu pai costuma dizer que nos sinais da natureza está escrito se o inverno vai durar muito ou pouco. Este ano, todos os sinais anunciaram neve bem abundante e um frio tremendo. Mas, embora todos os dias ficássemos em casa apertados como sardinhas em lata, não me importei nada. Pela primeira vez.
Só quase na primavera é que a Senhora dos livros pôde voltar a visitar-nos. A minha mãe ofereceu-lhe um presente, a única coisa de valor que lhe podia dar: a sua receita de tarte de framboesa, a melhor do mundo.
— Não é muito, bem sei, para o grande esforço que faz — disse a minha mãe.
Em seguida, baixou a voz e acrescentou com orgulho:
— E por ter conseguido arranjar dois leitores onde apenas havia um!
Baixei a cabeça e esperei pelo fim da visita para comentar:
— Também gostaria de ter alguma coisa para lhe oferecer.
A Senhora dos livros virou-se e fitou-me com os seus grandes olhos negros:
— Vem cá, Cal — disse, com muita doçura.
Quando me aproximei dela, pediu:
— Lê-me alguma coisa.
Abri o livro que tinha entre as mãos, mesmo acabadinho de chegar. Dantes, eu pensava que eram quatro garatujas, mas agora já sei ver o que contém. E li um pouco em voz alta.

— Esta é que é a minha prenda! — disse a Senhora dos livros.
Heather Henson
La señora de los libros
Barcelona, Editorial Juventud, 2010
(Tradução e adaptação)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Este mês podes ouvir...

Céline Marie Claudette Dion (Charlemagne, 30 de março de 1968) é uma cantora, compositora e empresária canadiana. Nascida numa família numerosa de Charlemagne, Quebec, Dion surgiu como uma estrela teen no mundo francófono na década de 80, depois de que o seu empresário e futuro marido, René Angélil, hipotecou a sua própria casa para financiar o seu primeiro disco. Em 1990, ela lançou o álbum em Inglês Unison, estabelecendo-se como uma grande artista pop na América do Norte e outras áreas de língua inglesa no mundo.
Dion ganhou reconhecimento internacional pela primeira vez em 1980, ao ganhar o Mundial 1982 Yamaha Popular Song Festival, e no Festival Eurovisão da Canção 1988. Após uma série de álbuns franceses no início dos anos 1980, ela assinou com a CBS Records em 1986. Durante a década de 1990, alcançou enorme fama mundial depois de assinar com a Epic Records e lançar vários álbuns em língua inglesa, e dando sequência aos álbuns franceses, tornou-se uma das artistas mais bem-sucedidas da história da música pop. No entanto, em 1999, no auge de seu sucesso, Dion anunciou um hiato de entretenimento, a fim de começar uma família e passar mais tempo com o seu marido, a quem tinha sido diagnosticado com um cancro. Ela voltou ao topo da música pop em 2002 e assinou um contrato de três anos (mais tarde alargado a quase cinco anos, devido enorme sucesso) para se apresentar todas as noites no seu próprio Coliseu no Colosseum do Caesars Palace, em Las Vegas. Celine Dion é a artista mais premiada de todos os tempos, segundo o Guinness World Records, e a sua lista de prémios inclui um total de mais de 1.100 prémios conquistados na sua carreira.
A música de Celine foi influenciada por géneros que vão do pop, rock, R&B ao gospel e música clássica. Possui álbuns de vendagens jamais vistas até então por uma cantora canadiana. Ela é conhecida por sua voz extremamente poderosa e tecnicamente perfeita. Céline é a única artista feminina a ter dois singles que já venderam mais de três milhões de cópias no Reino Unido. Além disso, ela é autora de D'eux, o álbum em francês mais vendido de todos os tempos. Em 2004, após ultrapassar 185 milhões em vendas de álbuns em todo o mundo, ela foi presenteada com o Diamond Award no World Music Awards sendo considerada pela cerimónia a maior artista feminina de todos os tempos. De acordo com a Sony Music Entertainment, Céline Dion já vendeu mais de 220 milhões de álbuns em todo o mundo, sendo a artista feminina que mais vendeu discos em toda a história da música e também uma das artistas que mais vendeu discos em todos os tempos.

Céline Dion, a mais jovem de catorze filhos de Adhemar Dion e Therèse Thanguay (que deu a Céline este nome em homenagem a uma canção que escutava enquanto estava grávida), cresceu numa casa pobre, mas segundo ela, feliz, na pequena localidade de Charlemagne. Começou a apreciar música cantando com suas irmãs mais velhas quando tinha apenas cinco anos de idade em pequeno bar pertencente a seus pais. Numa entrevista de 1992 concedida à revista People, ela disse: "Eu sentia falta da minha família e do meu lar, mas não me arrependo de ter perdido a minha adolescência. Eu tinha apenas um sonho: ser uma cantora reconhecida."

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Este mês podes ver...

Amigos Improváveis (Intouchables) é um filme francês de comédia dramática, escrito e realizado por Olivier Nakache e Éric Toledano, com François Cluzet e Omar Sy nos principais papéis. O filme aborda a relação de um multimilionário tetraplégico e do seu peculiar auxiliar de enfermagem, um ex-presidiário que toma conta dele. Desta relação nasce uma amizade improvável que comoveu o mundo inteiro, colocando a película nas páginas da história ao ser considerada o maior sucesso de um filme em língua não inglesa.
Baseado no livro autobiográfico de Philippe Pozzo di Borgo, Le Second souffle. O filme assim como o livro são baseados em fatos reais. Foi o filme mais visto na França em 2011 e é o mais rentável filme francês da história. O dinheiro arrecadado com a venda dos direitos de autor da adaptação do livro ao cinema, cerca de 650 mil dólares, foi doado a uma associação de ajuda a deficientes físicos.

A sua estreia em Portugal ocorreu a 29 de março de 2012. Foi exibido de forma pioneira dobrado em português, com as vozes de Igor Gandra, Pedro Mendonça, Joana Carvalho, Raquel Rosmaninho e Rui Oliveira.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Este mês podes ler...

Crónica dos Bons Malandros do jornalista e escritor português Mário Zambujal, editada em 1980, atingiu um grande êxito editorial e literário, tendo tido umas das suas reedições mais recentes em 2013. Relato do quotidiano dos membros de uma quadrilha fora do comum, que recusava o uso de armas de qualquer espécie, tendo, simbolicamente, como chefe um homem com a alcunha de pacifista, este livro é dividido em nove capítulos que se estruturam do geral para o particular, recorrendo a uma "espécie" de didascálias, para apresentar as personagens e alguns pormenores da ação..
Um livro que continua atual. Talvez, se fosse escrito agora, estes malandros estivessem dotados de equipamentos eletrónicos todos sofisticados. Mas malandros são malandros, seja em que época for.
Descrições dos malandros ao pormenor, desde a infância ao seu encontro e formação da quadrilha. Percursos tristes e desequilibrados, mas que de alguma maneira acabam por nos fazer rir. Assim segue a narrativa até ao desenlace final, quem é afinal o mais malandro de todos?
Sinopse desta edição

“Sinto-me sequestrado por estes bons malandros". Aos livros que fui escrevendo, e outros que venha a escrever, não lhes valem possíveis méritos. Mais de trinta anos depois de saltarem à cena, sem outra pretensão do que fazer sorrir circunstanciais leitores, os bons malandros não arredam pé e ganharam a afeição de gerações sucessivas. Nada mais surpreendente, para quem lhes deu vida, esta longevidade que permite divertir jovens de hoje, tal como acontecera com seus pais e mesmo avós. Aqui se apresenta uma nova (e esmerada) edição de um livro que já galgou pelo cinema e pelo teatro e ameaça novos estrondosos cometimentos. Entretanto, o que o autor ambiciona é o mesmo de sempre: proporcionar prazer de leitura a quem se dispõe à descoberta das singulares aventuras destes bons malandros. Se eles vos divertirem, cumprem o seu destino."

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Conheces o autor do mês...

Mário Zambujal (1936, - ) autor de ficção, não leva esta atividade muito a sério, apesar dos dificilmente ignoráveis êxitos. Considera, por exemplo, o seu primeiro livro, Crónica dos Bons Malandros, “um trabalho de jornal que por acaso é ficção”. Iniciou-se como jornalista profissional em A Bola, em 1961, e é apresentado como tal que, sem dúvida, melhor se sente. Costuma dizer que a história da sua vida se resume a anotar as etapas dos jornais por onde passou. E foram muitos. Se tinha vinte e cinco anos quando entrou para A Bola, sete anos mais tarde ingressou no Diário de Lisboa, que deixou no ano seguinte (1968), trocando-o pelo Record então dirigido por Artur Agostinho. Em 1970 entra para O Século, onde no 25 de Abril de 1974 era chefe da redação; manteve-se nestas funções de chefia até meados de 75, altura em que assumiu a direção do Mundo Desportivo (“fui-me embora para as Berlengas”, segundo as suas palavras). A convite de Vítor Cunha Rego, transitou para chefe de Redação do Diário de Notícias, após os acontecimentos do 25 de Novembro. O Sete de que foi o primeiro diretor, foi a experiência seguinte, e depois o trabalho na televisão, tendo integrado o quadro da RTP. Incursão muito notada igualmente na rádio, no programa “Pão com Manteiga”. Assume igualmente a coautoria de alguns textos de teatro de revista como “Não Batam Mais no Zézinho”, “Isto É Maria Vitória” OU “Toma Lá Revista”.
Quanto aos seus livros de ficção, “Crónica dos Bons Malandros” (1980), que seria objeto de adaptação cinematográfica, é um percurso trágico-burlesco pelo mundo da marginalidade lisboeta, pela precariedade quotidiana dos vigaristas de pacotilha que sonham com “o grande golpe” que os tire do pequeno submundo anónimo. Em “Histórias do Fim da Rua”, segundo livro de ficção editado três anos mais tarde, Mário Zambujal, entrelaça histórias que têm a ver com a Rua de Trás, em demolição, sacrificada a um “progresso” protagonizado por especuladores imobiliários e, simultaneamente, por um casal – Nídia e Sérgio -, perfis muito característicos de uma perfeita dissolução, tanto no que diz respeito a uma geografia urbana como a uma relação sentimental com dez anos de vida. O seu terceiro livro, publicado outros três anos mais tarde, intitula-se “À Noite Logo se Vê” e retomou o sucesso do primeiro, distanciando-se do relativo silêncio votado ao anterior. Quanto ao argumento, é exposto de rompante, logo na página 4: “ No tempo inteiro de quatro anos, não nasceu nenhuma criança, uma que fosse, menino ou menina, na aldeia do Roseiral” e Mino Miralva, narrador de muitas histórias, começa a investigar.

De resto, o autor continua a considerar-se como um jornalista que escreve para se divertir, com um humor infantil, matreiro, marcado por uma linguagem ágil e cheia de humor genuíno e fresco e uma prosa despretensiosa e criadora de personagens que só por si constituem todo um universo ficcional: “O Cacildo Tavares, sacrificado repórter da velha guarda”, ou o “imparável fura-vidas Jacinto Rebite” são exemplos que fazem do último romance de Mário Zambujal, como disse uma crítica conceituada, “a fantástica recuperação de um risco que andava por aí perdido”.

Fonte: www.portaldaleitura.com

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

As Sem Razões do Amor


Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Laura e o Rato Desgosto


Como todas as manhãs, Laura abriu o armário para tirar um vestido. Que horror! Adivinha o que encontrou escondido no fundo… Um grande rato dos esgotos, que ria com todos os dentes. Laura quis gritar, chamar os pais, mas o grande ratão preveniu-a, apontando-lhe um revólver à testa:
— Se gritares, mato-te. Se me denunciares, desfaço-te.
Então, Laura fechou a boca a cadeado, assim como o armário e todos os sentidos do seu corpo.
Ela bem queria pôr um cadeado no armário e esquecer, mas, todas as manhãs e todas as noites, o rato gordo dos esgotos batia na porta com a cabeça, até ela a abrir.
À noite, todos os dias, ao abrir a porta para se vestir ou despir, lá estava o rato gordo. Laura despachava-se a tremer, mas não se atrevia a dizer nada. Porquê? Talvez porque o rato grande dos esgotos não fosse criança e se deva obedecer às pessoas crescidas, mesmo que sejam dos esgotos, não é verdade? Era o que Laura pensava.
Uma noite, o rato disse-lhe, com olhos terríveis:
— Quero ser o teu ursinho. Dá-me um beijo de boa-noite, se não, levas uma palmada.
Então Laura chorou, mas deu-lhe um beijo, o que achou horrível. Só que ela já não sabia muito bem o que era horrível e o que era agradável, porque, como já disse, ela tinha fechado, trancado e bloqueado tudo dentro dela. O rato estava, evidentemente, todo satisfeito, e disse, enquanto fumava o seu charuto:
— Todas as noites vens dar-me o meu beijo, minha linda. Assim quero e assim tem de ser.
O grande rato dos esgotos exigia coisas do arco-da-velha.
— Olha — dizia ele — lava-me estas peúgas fedorentas e põe-nas a secar. Quero todas as tuas bonecas. Aborreço-me aqui sozinho dentro do armário.
Um dia, o rato disse-lhe:
— Traz-me um bombom. Traz-me o teu bolo de arroz e as tuas batatas fritas.
E Laura lá lhos levou. Deu-lhe também os seus copos de leite, o lanche, o jantar e tudo o que ela comia de manhã, à tarde e à noite.
Um dia, pediu-lhe o sono, depois, os seus lindos sonhos cor-de-rosa. Quando se é rato de esgoto, só se tem sonhos horríveis. Ele deu-lhe os pesadelos negros e ela deu-lhe os seus sonhos cor-de-rosa.
Os pais de Laura começaram a ficar preocupados porque a viam emagrecer e perder o sono, sem saberem que Laura dava tudo ao rato grande e cinzento dos esgotos. (Laura pusera-lhe o nome de “Rato Desgosto”)
Certo dia, quando estava já muito magra por não comer nada e entregar tudo ao rato, Laura soube que, se não falasse, algo de grave lhe podia acontecer. Então disse à mãe:
— Mamã, tenho uma história para te contar. É a história do rato Desgosto.
Contou-lhe toda a história. A mãe ficou horrorizada e chorou todas as lágrimas que Laura tinha contido desde que decidira pôr a carapaça e fechar-se. Fez muito bem às duas.
Naquela noite, quando abriu a porta do armário, Laura viu que o rato tinha desaparecido e só lá tinha deixado as peúgas, aquelas que Laura tinha lavado. Eram tão pequeninas, que Laura franziu o sobrolho.
— Não pode ser! O rato Desgosto tinha uns pés assim tão pequeninos… afinal era minúsculo!
Ela que pensava que ele era tão grande e que nada podia contra ele! Afinal, bastou falar à mãe para ele desaparecer do armário, sem pedir mais nada. Era mesmo um rato nojento, mas que agora já não lhe fazia medo nenhum.
— Vês, Laura — disse-lhe a mãe. — Quando alguém te pedir alguma coisa, tens de te perguntar a ti própria, bem no fundo, se queres. Se alguma coisa em ti te diz que estás a ser forçada, ou que magoam o teu corpo, não deves obedecer, pelo menos antes de falares a alguém sobre isso. Mesmo que seja um Marciano, um rato dos esgotos, um crocodilo… mesmo que seja uma pessoa importante.
E ainda lhe disse:
— Se amanhã vires alguma coisa no armário, por favor, di-lo a um adulto. A mim, ao pai, à madrinha, à professora… a quem quer que seja! E, se alguém te ameaçar na rua, pede socorro a um adulto, entra numa loja ou noutro sítio qualquer. Nenhuma criança deve submeter-se a um rato do esgoto. Percebeste, minha querida?
— Sim — prometeu Laura, tranquilizada com esta promessa.

Nessa noite, Laura recuperou o bolo de arroz, os bombons, o seu ursinho, as batatas fritas. E o seu bom aspecto. Infelizmente durante algum tempo, ainda continuou a ter os antigos pesadelos negros, cheios de ratos dos esgotos, de ratinhos e de ameaças. Porque o ratão Desgosto tinha-lhe roubado alguns dos seus sonhos cor-de-rosa. Precisava de esperar algum tempo para os recuperar.