sexta-feira, 30 de novembro de 2012

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Ladino


Grande bicho, aquele Ladino, o pardal! Tão manhoso, em toda a freguesia, só o padre Gonçalo. Do seu tempo, já todos tinham andado. O piolho, o frio e o costeio não poupavam ninguém. Salvo-seja ele, Ladino.
Mas como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!... E logo de pequenino. Matulão, homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho?! Uma semana inteira em luta com a família. Erguia o gargalo, olhava, olhava, e - é o atiras dali abaixo!... A mãe, coitada, bem o entusiasmava. A ver se o convencia, punha-se a fazer folestrias à volta. E falava na coragem dos irmãos, uns heróis! Bom proveito! Ele é que não queria saber de cantigas. Ninguém lhe podia garantir que as asas o aguentassem. É que, francamente, não se tratava de brincadeira nenhuma!
Uma altura! Até a vista se lhe escurecia... O pai, danado, só argumentava às bicadas, a picá-lo como se pica um boi. Pois sim! Ganhava muito com isso. Não saía, nem por um decreto. E, de olho pisco, ali ficava no quente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem tinha de lho meter no bico...
Contudo, um dia lá se resolveu. Uma pessoa não se aguenta a papas toda a vida. Mas não queiram saber... Quase que foi preciso um paraquedas.
Mais tarde, quando recordava a cena, ainda se ria. E deliciava-se a descrever as emoções que sentira. Arrepios, palpitações, tonturas, o rabinho tefe-tefe. E a ver as coisas baças, desfocadas. Agoniado de todo! Valera-lhe a santa da mãe, que Deus haja.
- Abre as asas, rapaz, não tenhas medo! Força! De uma vez!
Tinha de ser. Fechou os olhos, alargou os braços, e atirou o corpo, num repelão... Com mil diabos, parecia que o coração lhe saía pelos pés! Ar, então, viste-o.
Deu às barbatanas, aflito.- Mãe!
Mas afinal não caía, nem o ar lhe faltava, nem coisíssima nenhuma. Ia descendo como uma pena, graças aos amortecedores. Mais que fosse! No peito, uma frescura fina, gostosa... Não há dúvida: voar era realmente agradável! E que bonito o mundo, em baixo! Tudo a sorrir, claro e acolhedor...
A mãe, sempre vigilante e mestra no ofício, aconselhou-lhe então um bonito antes de aterrar. Dar quatro remadas fundas, em cheio, e, depois, aproveitar o balanço com o corpo em folha morta, ao sabor da aragem...
Assim fez. Os lambões dos irmãos nem repararam, brutos como animais! A mãe é que disse sim senhor, com um sorriso dos dela...
E pousou. Muito ao de leve, delicadamente, pousou no meio daquela matulagem toda, que se desunhava ao redor duma meda de centeio.
Terra! Pisava-a pela primeira vez! Qualquer coisa de mais áspero do que o veludo do ninho, mas também quente e segura. Deu alguns passos ao acaso, a tirar das cócegas nos dedos um prazer de que ainda tinha saudades. Depois, comeu. Comeu com fome e com gula os grãos duros que o sol esbagoava das espigas cheias. Numa bicada imprecisa, precipitada, foi a ver, engolira uma pedra. Não lhe fez mal nenhum. Pelo contrário. Ricos tempos! Desde o entendimento ao estômago, estava tudo inocente, puro. Fosse agora, e era indigestão pela certa. Arrombadinho de todo! Por isso fazia aquela dieta rigorosa...
Falava assim, e ria-se, o maroto. Nem pejo tinha da mocidade, que o ouvia deslumbrada.
- A vergonha é a mãe de todos os vícios - costumava dizer.
E tanto fazia a Ti Maria do Carmo pôr espantalho no painço, como não. Ladino, desde que não lhe acenassem com convite para arrozada numa panela, aos saltinhos ia enchendo a barriga. Depois, punha-se no fio do correio a ver jogar o fito, como quem fuma um cigarro. Desmancha-prazeres, o filho da professora aproximava-se a assobiar... Ah, mas isso é que não. Brincadeiras com fisgas, santa paciência. Ala! Dava corda ao motor, e ó pernas! Numa salve-rainha, estava no Ribeiro de Anta. Aí, ao menos, ninguém o afligia. Podia fartar-se em paz de sol e grainha.
- Que mais quer um homem?!
- O compadre lá sabe...
- Bem... Tudo é preciso... São necessidades da natureza... Desde que não se abuse...
E continuava, muito santanário, a catar o piolho. Depois, metia-se no banho.
- Rica areia tem aqui o cantoneiro, sim senhor!
D. Micas concordava. E só as Trindades o traziam ao beiral da Casa Grande.
Adormecia, então. E a sono solto, como um justo que era, passava a noite. Acordava de madrugada, quando a manha rompia ao sinal de Tenório, o galo. Isto, no tempo quente. Porque no frio, caramba!, ou usava duma tática lá sua, ou morria gelado. Aquelas noites da Campeã, no Janeiro, só pedras é que podiam aguentá-las. E chegava-se à chaminé. Com o bafo do fogão sempre a coisa fiava de outra maneira.
Ah, lá defender-se, sabia! A experiência para alguma coisa lhe havia de servir. Se via o caso mal parado, até durante o dia punha o corpo no seguro. Bastava o vento soprar da serra. Largava a comedoria, e - forro da cozinha! Não havia outro remédio. Tudo menos uma pneumonia!
A classe tinha realmente um grande inimigo - o inverno. Mal o Dezembro começava, só se ouviam lamúrias.
- Isto é que vai um ano, Ti Ladino!
A Cacilda, com filhos serôdios, e à rasca para os criar.
- Uma calamidade, realmente. Mas vocês não tomam juízo! É cada ninhada, que parecem ratas!
- O destino quer assim...
- Lerias, mulher! O destino fazemo-lo nós...
Solteirão impenitente, tinha, no capítulo de saias, uma crónica de pôr os cabelos em pé. Tudo lhe servia, novas, velhas, casadas ou solteiras. Mas, quando aparecia geração, os outros é que eram sempre os pais da criança.
- Se todos fizessem como eu...
- Ora, como vossemecê!... Cala-te, boca. Mudemos de conversa, que é melhor... Segue-se que não sei como lhes hei-de matar a fome... - gemia a desgraçada.
- Calculo a aflição que deve ser...
E o farsante quase que chorava também. Quisesse ele, e a infeliz resolvia num abrir e fechar de olhos a crise que a apavorava. Pois sim! Olha lá que o safado ensinasse como se ia ao galinheiro comer os restos!... Enchia primeiro o papo e, depois, a palitar os dentes, fazia coro com a pobreza.
- É o diabo... Este mundo está mal organizado...
Um monumento! Como ele, só mesmo o padre Gonçalo. Quanto maior era a miséria, mais anediado andava.
- Aquilo é que tem um peito! Numas brasas, com uma pitada de sal...
Mas já Ladino ia na ponta da unha. Não queria quebrar os dentes de ninguém. Carne encoirada, durásia...
E acrescentava:
- Isto, se uma pessoa se descuida, quando vai a dar conta está feita em torresmos. Que tempos!
O mais engraçado é que já falava assim há muitos anos, com um sebo sobre as costelas, que nem cabrito desmamado.
De tal maneira, que o Papo Magro, farto daquela velhice e daquelas manhas, a certa altura não pôde mais, e até foi malcriado.
- Quando é esse funeral, ti Ladino?
Mas o velho raposão, em vez de se dar por achado, respondeu muito a sério, como se fizesse um exame de consciência:
- Olha, rapaz, se queres que te fale com toda a franqueza, só quando acabar o milho em Trás-os-Montes.

Miguel Torga, Os Bichos

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Conheces o autor do mês...

Jorge Cândido de Sena nasceu em 1919, em Lisboa. Depois de concluir os estudos liceais, ingressou na Escola Naval, vindo a formar se em Engenharia Civil na Universidade do Porto. Ainda durante os estudos universitários, publicou sob o pseudónimo Teles de Abreu, as suas primeiras composições poéticas em periódicos e foi nessa altura que travou conhecimento com José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Alberto Serpa e Casais Monteiro, entre outros.
Em 1942, foi publicada a sua primeira obra poética: "Peregrinação". Ainda durante os anos 40, colaborou com "Aventura", "Litoral", "Portucale", "Seara Nova", e "Diário Popular", iniciando a sua atividade literária como tradutor de poesia . A partir de meados dos anos 40, intensificou a sua atividade de conferencista, proferindo comunicações que incidiam frequentemente sobre dois dos seus temas preferidos: Camões e Fernando Pessoa. Durante os anos 50, afirmou se como uma das presenças mais influentes e complexas da cultura e literatura portuguesas; e foi durante essa década que publicou algumas das suas mais conhecidas obras poéticas ("Metamorfoses", "Evidências", "Fidelidades"); que publicou a sua primeira tentativa dramática, a tragédia "O Indesejado"; que colaborou com publicações como a "Gazeta Musical e de Todas as Artes", "Árvore", "Notícias do Bloqueio", "Cadernos do Meio Dia"; e que organizou a terceira série da antologia "Líricas Portuguesas". A sua postura contra a ditadura fascista levou-o em 1959, após o envolvimento numa tentativa falhada de golpe de Estado militar contra o regime salazarista, a optar por um exílio voluntário no Brasil, onde exerceu funções de docência nos domínios da Literatura Portuguesa e da Teoria da Literatura. Publicou então, uma série de obras ensaísticas como "Da Poesia Portuguesa" e desenvolveu uma intensa atividade como congressista, não deixando ainda de participar em ações de denúncia da ditadura a partir do exterior. Em 1960 publicou o seu primeiro livro de ficção, a coletânea de contos "Andanças do Demónio". No ano seguinte publicou o primeiro volume da sua obra poética completa. Face aos obstáculos que sistematicamente eram levantados à sua progressão na carreira académica, em 1965 transferiu se para a Universidade do Wisconsin, nos Estados Unidos da América, onde seria nomeado professor catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira. Em 1970 transferiu se para a Universidade de Califórnia. Entretanto, participou em inúmeros congressos internacionais; tornou se membro da Modern Languages Association e da Renaissance Society of America, nunca interrompendo a edição, quer de títulos de teoria e história literária e estudos literários clássicos, modernos e contemporâneos, quer a obra poética pessoal, publicando os livros de poesia "Arte de Música" e "Peregrinatio ad Loca Infecta". Após o 25 de Abril, recebeu várias homenagens públicas em Portugal, tendo sido condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique e, a título póstumo, com a Grã Cruz da Ordem de Santiago e Espada. No ano da sua morte, em 1978, vieram a público, revistos pelo autor, os volumes "Poesia II" e "Poesia III", a que se seguiriam, postumamente, os volumes "40 Anos de Servidão" e "Post Scriptum II".


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Este mês sugerimos o livro...


(El otoño del patriarca em castelhano) é um romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, publicado em 1975. Este romance é considerado uma fábula centrada na saudade do poder, cuja ação se desenvolve num país fictício nas margens do Mar das Caraíbas governado por um ditador, um general ancião, que recria o estereótipo das ditaduras da América Latina do século XX, quanto à concentração do poder num militar só. Neste livro García Márquez elabora largos parágrafos sem pontos nem vírgulas entrelaçando pontos de vista narrativos distintos; numa espécie de monólogo múltiplo em que os intervêm vários elementos não identificados. García Márquez ridiculariza as práticas das altas patentes militares com os seus jovens herdeiros (a quem legam o poder), e os gastos assoberbados das suas famílias e compadres. Um retrato bastante realista é traçado da figura do diretor dos serviços secretos, que em pouco tempo controla todos os movimentos do general e constrói um aparelho de terror e repressão política.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Este mês sugerimos ver...


Em Inglaterra no século XII, Tom, um humilde pedreiro e mestre-de-obras, tem um sonho majestoso – construir uma imponente catedral, dotada de uma beleza sublime, digna de tocar os céus. E é na persecução desse sonho que vamos encontrando um colorido mosaico de personagens que se cruzam ao longo de gerações e cujos destinos se entrelaçam de formas misteriosas e surpreendentes, capazes de alterar o curso da história. Recheado de suspense, corrupção, ambição e romance, Os Pilares da Terra é decididamente a obra-prima de um autor que já vendeu 90 milhões de livros em todo o mundo.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Teu Riso


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria. 


Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda